Esses dias o Joca Terron publicou o seguinte tweet:
“(Kurt) Vonnegut também disse que nenhum esquema de histórias modernas dá satisfação ao leitor a menos que algum enredo antigo – alguém se vinga, alguém mente, alguém mata, rouba, trai, trepa – seja introduzido. Na ficção brasileira atual só restou um enredo: a vingança de classe.”
Gosto muito do trabalho do Joca e talvez (talvez) compartilhemos do mesmo incômodo. Há na literatura brasileira atual uma verdadeira obsessão pela reparação histórica.
O problema é que existe uma barreira que blinda esse tema de quase qualquer crítica.
É como se ao criticar um livro como Torto Arado estivéssemos apontando o dedo contra a questão agrária no Brasil. O mesmo se dá com livros centrados em temas como raça, feminismo, cultura LGBTQIA+, cultura dos povos originários e outros. A causa algumas vezes se sobrepõe à obra.
Não é possível projetar sobre essas obras uma análise crítica mais dura sem correr o risco de soar machista, homofóbico, misógino ou sem ofender potencialmente a alguma minoria ou grupo oprimido socialmente porque estamos falando de uma arte presa a um sentido ético/moral.
Quando a arte se prende a um sentido, se criticamos a forma acabamos criticando o conteúdo.
Em Tár (2022), de Todd Field, há sequência sem cortes na qual acompanhamos uma aula de regência comandada pela personagem principal vivida por Cate Blanchett. Um de seus alunos se recusa a tocar Bach. Segundo ele, sua condição de homem gay e negro o impede de apresentar uma obra criada por um homem branco e de pensamento conservador.
Aqui há um desvio: a forma parece boa, o conteúdo também, mas o juízo moral recai sobre o autor. Esse juízo desconsidera certas obras em favor do certo ou do errado aplicado sobre a conduta do autor.
Tár é um filme sobre uma pessoa horrível cometendo atos deploráveis, mas ainda assim comprometida com sua arte. Não é uma justificativa, mas uma representação de que a arte é feita certas vezes dentro de um espaço amoral e antiético.
Uma pessoa horrível pode ser um artista formidável. Quase sempre é. A arte não serve para amenizar isso e é justamente essa contradição que faz com que certas obras sejam tão atordoantes.
No caso da literatura brasileira de hoje há uma dupla cobrança:
O autor precisa defender uma causa ou sentido.
O autor precisa ser ele mesmo parte da causa defendida ou pelo menos se colocar num “lugar seguro de fala”.
Me ocorreu um caso curioso. No ano passado, enquanto o projeto do meu livro ainda estava em andamento, enviei a uma colega alguns textos para análise. Algumas semanas depois recebi suas impressões e uma me chamou a atenção: a recomendação de que um conto não soava bem pois eu, enquanto homem branco, não tinha lugar da fala para representar uma personagem negra.
A personagem fora inspirada em minha mãe e o conto era parte da minha experiência como filho branco de uma mulher negra.
O conto não tentava reparar nada, justificar, orientar, definir ou apaziguar nada. Era apenas um pedaço obscuro da minha memória.
A colega fez a crítica com a melhor das intensões, mas o mais estranho para ela foi perceber que eu não queria dizer nada além do que já havia sido dito. Eu não queria e não quero usar a minha escrita para reparar qualquer dano sofrido a ninguém porque não é para isso que eu escrevo. Eu não escrevo pensando em consertar nada, nem no mundo, nem em mim. Há quem escreva para isso e há quem não escreva e as duas formas são boas. Nem sempre a literatura precisa fazer parte de um projeto coletivo de reparação.
Em seu ensaio “Sobre o estilo”, Susan Sontag discorre sobre o problema da arte comprometida unicamente com as regras do sentido (moral, social, histórico). Segundo ela:
“Uma obra de arte, na medida em que é obra de arte, não pode – quaisquer que sejam as intenções pessoais do artista – defender coisa alguma. Os maiores artistas atingem uma neutralidade sublime.”
A ideia de uma neutralidade sublime apavora o autor brasileiro moderno. Não falo de uma neutralidade do tipo “nem de direita, nem de esquerda”, mas da neutralidade de não esperar que a arte sempre diga algo claro. A neutralidade de deixar ao leitor parte do trabalho da obra, de não colorir todas as lacunas do texto com alguma “reflexão”, de não pensar que o texto seja uma coleção de frases perfeitas para as redes sociais.
Certas obras tornam-se revolucionárias justamente por conta dessa zona cinza, dessa insegurança lógica nascida num terreno nebuloso entre o bem e o mal onde não há uma moral piscando em letras garrafais a todo momento.
De algum modo se tornou transgressor escrever sobre sentimentos e não sobre objetivos. De algum modo a literatura ancorada apenas em uma palavra depois da outra nos parece incômoda e ousada. De algum modo mudar o mundo através da literatura se tornou uma coisa cansativa. Pelo menos pra mim.
Sim, a literatura pode ser um jeito de reparar injustiças históricas.
Sim, a literatura pode abraçar causas e sentidos importantes.
Mas a arte, como diz Susan Sontag, não precisa defender nada para ser arte. E a literatura pode ser engajada socialmente e ainda assim medíocre. O problema é não poder separar isso.
E mais: o problema é não criarmos uma literatura sem motivo, sem tema, sem outro propósito senão ser literatura.
Susan atacou o problema em outro ensaio colossal. Em “Contra a interpretação”, seu trabalho mais conhecido, ela defende o direito da arte ser apenas o que se apresenta. Um quadro é um quadro, um filme é um filme, um romance é um romance. Não se trata de uma redução, mas de criar um modo de ver a arte sem que haja a obrigação de um sentido social/histórico.
Por medo da frivolidade muitos autores ocultam em suas obras novos sentidos, como um tesouro que só será descoberto através do exercício interpretativo.
Capitu e Diadorim são os exemplos mais famosos da literatura brasileira quando se trata de ambiguidade. São personagens dúbios não por causa de um sentido oculto, mas porque representam a ambiguidade em si mesma. O ambíguo é desestabilizador, tal qual a vida, tal qual a arte.
Um livro que hoje não defenda uma causa ou um sentido claro parece frívolo. O estilo pouco importa. A poética, o surreal, o mágico, o inesperado, o infamiliar - tudo isso é posto de lado em nome de uma mensagem óbvia que faça o leitor “refletir”.
É preciso dizer: os temas importantes são... importantes, mas a arte não serve a um só senhor. As reparações históricas não virão apenas através da literatura. O valor da criação artística não é um valor moral.
A arte não está aqui para resolver nada.
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me lembrei do que vem ocorrendo com a Laerte e a ânsia do público em "entender" a tirinha, ou então a dificuldade em contemplar aquilo sem entender mesmo, esperando por uma explicação, uma interpretação que cabe a outro e não também a nós como parte do processo da arte
Acho (só acho) que o legal é pensar justamente a "neutralidade" que não existe. Interessantes as considerações Valter, eu queria poder te chamar pra um papo no buteco pra gente fruir mais essa temática. Acho (de novo, só acho) que camadas que reivindicam suas vozes, geralmente são vozes que por muitos tempos não tinham permissão de existir. E as histórias que não puderam ser contadas? Quando vc reivindica um "não sentido" tbm não se entende esse sentido de alguma forma, não coloca ele justamente dentro de um sentido? Concordo, "arte não está aqui pra resolver nada", mas ao mesmo tempo ela é a resolução de muitas angústias internas. E, ainda bem que temos ela, nem sei i que seria de mim se não pudesse escrever. Enfim, em missão de paz aqui, um grande abraço. Adoro ler sua news!