Walter Benjamin e o narrador - Newsletter do Valter - Nº2
"... a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente."
Walter Benjamin em "O narrador"
O marinheiro e o comerciante
Walter Benjamin via dois caminhos para a formação do narrador: o marinheiro e o comerciante de aldeia.
O narrador marinheiro era aquele que rodava mundo, conhecendo gente de todo tipo e voltando para casa com várias estórias para contar. Ou seja, um narrador que se colocava contra o mundo.
Já o comerciante de aldeia era quem jamais saia de seu rincão. Nascia, crescia e morria preso ao balcão e todas as histórias que sabia vinham até ele - não o contrário. Era aquele contra o qual o mundo impunha sua narrativa.
A palavra narrativa, embora gasta e usada erroneamente através do marketing e das redes sociais, ainda merece seu devido reconhecimento. É a nossa familiaridade ou não com esse conceito que molda nossa vida. Um bom narrador não será só aquele que conta boas histórias aos outros, mas quem se dispõe a narrar para si mesmo. O narrador, seja marinheiro ou comercial, organiza sua vida dentro de um sentido. O que cremos, fazemos e dizemos são formas de reforçar a nossa narrativa - o enredo do que somos. Que outra coisa é a psicanálise, a arte e a filosofia que uma grande ficção contada com os elementos que temos nas mãos?
Se falamos de escrita e criatividade, todo mundo quer ser marinheiro. O wunderlust, a vontade de fazer da vida um perpétuo movimento nômade, é parte da dialética do narrador-marinheiro, do sujeito homérico que aporta em lugares exóticos para depois experimentar o prazer de voltar para casa. A pandemia fechou os portos do nosso desejo e nos empurrou bruscamente para dentro da caserna. Somos comerciantes de aldeia sonhando com navios zarpando.
E não há nada de errado em ser um narrador do tipo aldeão. A rotina do nosso entorno, a mediocridade do nosso trabalho e a repetição dos nossos desejos também são uma forma de tocar o mundo. Aquilo que chega à praia trazido pelo mar algumas vezes é bem mais interessante do que aportar numa ilha deserta. Ilhas desertas, como sabemos, são monótonas e monotonia por monotonia há quem prefira a que existe no conforto de casa.
Alain de Botton, em seu excelente A arte de viajar, fala da frustração da viagem e de como a aventura pode ser uma cilada. A primeira vez num país estrangeiro costuma ser hedionda e em algum momento você se pega pensando em como está sua casa, seus gatos, seu sofá. As estórias que estão nos esperando por mares nunca dantes navegados nem sempre são as melhores. São abundantes os relatos de pessoas que cruzaram o mundo todo e de fato não se lembram bem de nada - o famoso "9 cidades em 5 dias" oferecido impunemente pelos balcões da CVC. A instagramarização da viagem reforça a tese de Benjamin. Estamos vendo tudo demais o tempo todo. Estamos consumindo mais e mais estórias/histórias e cada vez menos se envolvendo em narrativas/narrações. Narrar pressupõe um ouvinte e estamos falando sozinhos.
Quem não se encontra como narrador também não se encontra na vida. Não pode aproveitar o passado nem enredar o futuro. O presente se torna num grande "e depois" sem depois, pois sem enredo nada se conecta a nada. Quem não sabe narrar-se se torna inadvertidamente estória na boca dos outros. Passa a ser contado por um ponto de vista que não é seu, engole narrativas distorcidas sobre suas próprias emoções. Quem não narra não consegue entrar na roda vida do mundo. Não encontra sentido nem beleza, pois essas são coisas nascidas do gesto de ver e contar. Não aproveita gratuitamente o prazer do enredo que cruza nossas vidas num novelo sem fim. Se torna ponta solta, fio sem meada, cabo sem conexão. A narrativa, saibamos, é tão necessária quanto o ar.
O que andei escrevendo
Foucault dançando no TikTok — medium.com
Andei meio sumido, mas finalmente saiu texto novo lá no blog. Meu último é sobre a epidemia de dança das redes sociais e biopoder. Não é pra levar a sério.
Não ser bom pra nada — medium.com
Outro texto meu lá no Medium. Fazia tempo que eu queria falar sobre o incrível trabalho do Mark Fisher, que combinava crítica ao capitalismo tardio uma visão muito sincera sobre as doenças mentais.
Links
Alguns anos antes de publicar o livro de mesmo nome, Devon Price postou esse texto lá no Medium. Uma análise curiosa que afirma categoricamente que a preguiça é uma mentira contada pela sociedade de produção para nos fazer culpados. Em inglês.
Deepfakes, fake news: como separar a verdade e a mentira
Excelente matéria da Revista Gama sobre como estamos caminhando para um ponto sem volta, um mundo no qual será impossível separar verdade e mentira.
Depois de meses de pesquisa, está no ar o projeto A 4 Mãos, criado por mim e pela Gisela Hasparyk. Se trata de um jardim digital (saiba mais aqui) com uma lista de ferramentas úteis para trabalhadores digitais. Se você é escritor, freelancer, criador de conteúdo ou simplesmente quer otimizar o seu tempo no computador, recomendo que dê uma olhada: