Vovós quebrando vidraças em Brasília
Uma reflexão sobre dores nas costas, grupos do Zap e fascismo na melhor idade
Colagem digital do autor.
Em janeiro deste ano completei, sem nenhuma expectativa, 42 anos. Essa é uma idade peculiar, que lhe permite ainda ter algum contato com as referências de sua juventude, mas também se o faz se sentir velho demais para qualquer evento que ultrapasse as 22 horas.
Aqui e ali alguns pontos de sua memória começam falhar, os anos 80 ganham um ar de nostalgia, você começa a comprar mais e mais camisetas pretas, a ouvir sempre os mesmos discos e descobre, incrédulo, que já se passaram 25 anos desde que viu Titanic no cinema.
Além dessa coleção de clichês típicos da crise de meia idade, outra ideia me perturba: que tipo de velho eu serei daqui alguns anos? Quais das minhas convicções de hoje poderão se tornar preconceitos incorrigíveis? Quantos direitos humanos violarei na ceia de Natal de 2043?
O atentado a Brasília no dia 8 de janeiro, um dia depois do meu aniversário, me desbloqueou um medo inédito. Eu nunca tinha visto velhos tão enfurecidos, nem tampouco velhos se atirando contra as vidraças do palácio do Planalto. A perspectiva do envelhecimento como um encontro com a sabedoria foi estilhaçada pela cena de senhores e senhoras de cabelos grisalhos rasgando uma tela de Di Cavalcanti.
De algum modo me sinto responsável por tudo isso. Essa série de eventos caóticos começou no dia em que ajudei minha mãe a instalar o Facebook no celular. Parecia uma boa ideia ter contato com parentes distantes, trocar receitas de bolo e correntes de oração. Assim como muitos pais dão aos filhos um tablet com vídeos em looping da Galinha Pintadinha, demos aos vovôs e vovós um celular com redes sociais transmitindo notícias mentirosas sem parar.
Acima uma das figurinhas de bom dia que recebo no grupo da família.
Hoje tenho que convencer minha mãe de que vacinas não causam autismo (aos 62 ela se recusou veementemente a se vacinar, só o fez depois de um pequeno drama familiar ainda em curso), tenho que manter boa parte dos parentes sob égide do bloqueio digital e ainda assim recebo, vez ou outra, alguma notícia sobre a ameaça do comunismo. A cena da velhinha se atirando contra as vidraças do STF é o ápice um roteiro iniciado em sites de receitas de liquidificador e piadas do Ari Toledo.
Até 2012, 2013, as redes sociais eram para os boomers e os da geração X uma diversão tranquila. Com o tempo, a comunicação digital foi substituindo certos hábitos, como chegar na casa dos parentes num domingo à tarde sem avisar. Os parabéns foram trocados por mensagens pré-fabricadas de sites que coletam dados para empresas de empréstimo consignado, os gifs de Nossa Senhora foram a porta de entrada para páginas de teoria da conspiração, as fotos de gatinhos rolando com um novelo de lã direcionaram os cliques para sites sobre como o comunismo está sexualizando nossas crianças.
O que aconteceu de uma ponta a outra sabemos bem, não cabe repetir, mas creio que tudo isso só foi possível dentro de um cenário de profundo choque geracional. De modo geral, mas não absoluto, as gerações mais novas não estão nem aí para o fantasma do comunismo. A galera que já nasceu dentro da internet está mais preocupada com o novo single da Taylor Swift e as novas skins do Fortnite. De alguma forma o algoritmo (sempre ele) aprendeu que a desinformação funciona melhor nessa zona peculiar, composta por pessoas perdidas diante de um mundo cada vez mais rápido.
O bingo morreu, os grupos de costura e crochê também morreram. A fofoca de alpendre, com uma cadeirinha colocada na porta de casa para um cafezinho com as vizinhas, foi substituída por horas e horas a fio com um celular nas mãos. A rede social e as fake news viraram chupeta para velhos (perdão pela analogia horrível), uma zona de escape que serve também para manter os coroas num cantinho confortável, longe dos holofotes de uma sociedade apaixonada pela juventude e ácido hialurônico.
Sim, o que digo é uma simplificação carregada de exagero. O bolsonarismo e a febre fascista não podem ser resumidos apenas ao uso excessivo das redes sociais por vovôs e vovós, mas a coisa tem um certo sentido. De algum modo o Facebook, o capitalismo tardio, a harmonização facial e o largo consumo de doces feitos a base de leite condensado estão interligados com o fim da democracia mundial. O fio que junta todas essas partes será tema para uma magnífica tese de doutorado que alguém, não eu, um dia escreverá com fúria.
Envelhecer é ver o mundo ao redor se apagar. É ver seus amigos e parentes morrerem, é perder as referências diante da mudança veloz dos valores sociais. É se ver, ao mesmo tempo, obsoleto e necessário. Há quem envelheça com dignidade moral, mas agora sabemos bem que essa não é uma verdade absoluta. A internet se tornou a sala de fofoca perfeita para todos aqueles que encontraram na velhice a máscara perfeita para ocultar seus ódios pessoais.
O fato é que a classe média brasileira vive com medo. Medo de preto, de índio, de mulher, de gay. Medo de dividir o voo com gente barulhenta, medo dos filhos dividirem a sala de aula com os filhos dos pobres, medo dos pobres dividirem as terras, medo da mistura, medo do rosto parecer miscigenado demais – por isso o queixo quadrado europeu anda tão na moda. Esse medo vai continuar por aí, ampliando as métricas de engajamento dos coachs e lotando os consultórios estéticos. Esse medo criará raízes e virá à tona vez ou outra como uma convulsão, uma febre.
Quando sua coluna começa a falhar e você não lembra mais onde deixou os óculos, o medo parece mais palpável, mais real. Você precisa agir e a forma de ação mais fácil é o clique. Enviar aos parente a notícia de que Lula morreu e está sendo representado por um ator sob uma máscara de látex é um modo de agir – um modo maluco, mas sempre um modo. Medo engaja, dá views, viraliza. Os preconceitos individuais se tornam ideias coletivas poderosas através da combinação de internet e medo.
Nas vezes em que passei pelo acampamento golpista na frente do quartel de Belo Horizonte, encontrei uma maioria esmagadora de pessoas acima dos 50, algumas em cadeiras de rodas, outras paradas na chuva balançando uma cartolina murcha pedindo a morte do ministro Alexandre de Morais. Eram pessoas com medo, mas também pessoas preenchidas por uma ideia deturpada de pertencimento. Ali elas eram importantes, estavam fazendo a coisa certa. Estavam tentando aplicar ao seu mundo em desaparecimento a realidade artificial criada nos grupos do Telegram. E quando a imaginação e a realidade não se bicam, o resultado é trágico.
Essas senhoras e senhores não estavam defendendo uma ideia maluca apresentada sem argumentos, mas ideias nutridas de modo progressivo ao longo de anos em redes sociais e grupos de mensagens. Não se trata de uma mentira impulsiva, mas de uma mentira construída com dedicação. Nos anos em que vivi em BH, encontrei diversas vezes algumas vizinhas de meia idade vestidas de verde e amarelo nos corredores do prédio. Voltavam de alguma manifestação e quase sempre me perguntavam se eu iria ou não lutar pelo Brasil. Sempre achei isso engraçado, até ver de perto como o fascismo corrói uma parcela significativa da sociedade. Não é bonito de se ver, mas serve de alerta. Eu vou envelhecer, você também. Temos que nos tornar melhores do que isso.
Quais teorias conspiratórias estarei eu consumindo neste exato momento? A semente de uma velhice rancorosa já estará plantada nos confins do meu subconsciente? É possível viver no mundo digital sem se tornar progressivamente num filho da puta com foto de perfil de óculos escuros dentro de um carro parcelado? Hoje, aos 42, penso que ainda tenho alguma dignidade e que ainda consigo me distanciar do ruído digital antes de acreditar em qualquer lorota. Para o futuro enxergo apenas duas possibilidades: ceder ao chamado dos grupos do Zap e me tornar um ávido disparador de mensagens de bom dia e conspirações ou me afastar de vez das telas e me tornar um velho rabugento cercado de gatos, livros empoeirados e remédios.
Enquanto isso o cerco está fechando. Neste exato momento os algoritmos já sabem quais medos disparam os gatilhos certos em mim e propagandas de como perder barriga e de remédios milagrosos para ereção já começam a pipocar no meu feed.
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Recebo os mesmo posts desejando bençãos por parte de parentes amados e contaminados pelo caótico fascismo. E sob o olhar religioso, em especial da igreja evangélica, isso ganha espectro mais sinistro. Excelente texto.