Num vilarejo qualquer, um garoto atira uma pedra contra o vidro de uma janela. O garoto corre, mas repare: a vidraça não se partiu. O que vemos é uma rachadura pequena como um floco de neve.
O garoto para no final da rua e observa. Na casa ninguém percebeu o seu fracasso. A rachadura permanece lá dia após dia, sem que nenhuma mudança ocorra na vida dos moradores. O garoto pensa em realizar uma nova tentativa, busca pedras maiores, mas agora há uma tensão. Uma pedra maior poderá romper a janela e cair sobre as louças da cozinha. Poderá atingir alguém (o velho dorminhoco que sempre cochila perto do sol). É preciso pensar.
Enquanto passeia pelo bairro, o garoto observa o chão coberto de pedregulhos polidos trazidos pelos trabalhadores que reviram o mar. Uma pedra do tamanho de um ovo, pensa. Um ovo de galinho ou ovo de pato? Talvez não seja uma questão de tamanho, mas de densidade. Com uma pedra em cada mão ele tenta decidir qual é a mais densa. Um pedregulho preto, do tamanho de um ovo de codorna, parece bem mais pesado que a pedra porosa branca, nascida das entranhas de um vulcão adormecido. Poder ser só ilusão. A pedra preta carrega um mistério (como se tornou assim tão preta? quais forças deram-lhe um formato tão perfeito?) e o mistério é algo que pesa.
De volta ao seu quarto o garoto descobre que a ideia de quebrar a vidraça não é completamente sua. Veio possivelmente de um passeio ao vilarejo vizinho. Na ocasião, o garoto estava com seu pai e seus irmãos. O pai disse: Aqui havia um vilarejo que foi engolido pela praia. Fazia sentido que o mar engolisse as coisas, principalmente os barcos e as pessoas desavisadas, mas não era comum imaginar que o mar também engolisse uma cidade. Foram andando pela trilha de mato alto até o fim da escarpa. Lá em baixo algumas paredes e telhados caídos davam a ideia de um bairro. Desceram. Ali areia já havia tomado conta de tudo. O vento e as ondas haviam carregado os pisos, as portas, deixando só paredes abertas, tijolos aparentes. Adiante estava um grupo de garotos mais velhos empoleirados sobre uma mureta. Do outro lado erguia-se uma casa, igual a tantas outras. O telhado havia despencado para dentro das estruturas, restos de rede de pesca, troncos de madeira e pedaços de plástico emaranhavam-se ao redor. Todas as janelas pareciam ter sido retiradas, exceto uma. A disputa era para ver quem quebraria o único vidro restante, um quadradinho menor que uma folha de caderno, no canto esquerdo superior da esquadria. Era daí que vinha a ideia.
Aquele não fora um dia especialmente feliz na vida do garoto. O vento frio encharcou-lhe as vestes e logo depois ele ficou gripado. O vilarejo abandonado nada tinha de revelador. Não encontrou tigelas, colheres ou crucifixos, mas a ideia de partir uma vidraça com uma pedra parecia algo real, algo que alguém com coragem deveria tentar.
Passou novamente em frente a casa. A vidraça continuava lá com sua rachadura. Mais um golpe e tudo estaria pronto. Tocou a pedra dentro do bolso, a pedrinha preta, densa e misteriosa. Uma mulher surgiu na janela. Era preciso esperar o momento certo.
Sua vida de garoto corria leve e ligeira, com dias passando feito relâmpagos. O dia de terminar com a vidraça nunca veio. A pedrinha preta perdeu-se no turbilhão de coisas que os garotos perdem durante a vida. O pai morreu. O irmão mais velho também. O vilarejo ficou pequeno. Mudou-se para a cidade grande. Casou, descasou, bebeu, fumou. Ganhou e gastou com a mesma facilidade.
O enterro da mãe ocorreu sem surpresas. Da prole restavam apenas ele e o irmão do meio. Fazia tempo que não via o vilarejo, agora transformado em uma cidade turística cheia de restaurantes caros e hospedarias por temporada. Era começo de verão, com o dia um pouco mais longo que o normal. Foram voltando pelas ruelas, ele e o irmão, quando passaram pela casa da janela trincada. Vazia. O irmão disse que os donos haviam se mudado por conta da alta dos alugueis. O homem, agora novamente transformado em garoto, catou um pedaço de entulho e atirou.
E para sua surpresa o vidro se refez. Novinho em folha.