Uma vida sem plateia - Psicopompos - Edição Nº3
A newsletter mudou de nome e agora se chama Psicopompos. Na mitologia grega esse era um dos nomes do deus Hermes, que acompanhava as almas dos mortos em sua jornada ao Hades, mas o conceito diz respeito também ao universo literário.
Um psicopompo (psychē = alma, pompos = guia) é também o personagem que tira o protagonista da rota, aquele que muda a ordem de uma história fadada ao clichê. A esfinge de Édipo Rei, o farmacêutico Homais de Madame Bovary ou o misterioso jogador que aparece no metrô na série Round 6 (só pra citar algo da moda). São guias que nem sempre mostram caminhos, mas embaralham os destinos.
Na era da informação, o Psicopompos pode ser visto como um símbolo do anti-algoritmo. É aquele que espera caminhos aleatórios dentro da previsibilidade da informação digital. Essa newsletter é uma tentativa de organizar ideias, encontrar um caminho no meio da big data, das big techs e de toda a aceleração caótica que vivemos. Espero que gostem.
Uma vida sem plateia
Só agora descobri o Bo Burnham e o seu filme de um homem só, Inside, e estou fascinado pelo conceito. Daqui 20 anos esse filme será lembrado com um dos melhores testemunhos da nossa época, do que foi viver em quarentena e de como as redes sociais estão deixando todo mundo maluco.
Inside é simbólico não apenas pelo descompasso criado pela pandemia, mas por refletir ironicamente a mania moderna de transformar rotina em entretenimento. Burnham é o tipo de artista que transita no limite entre a risada e crise depressiva severa. É um dos poucos comediantes capazes de fazer você rir e depois ir correndo ao terapeuta. E isso é bom. Ninguém deveria rir de nada sem pensar sobre isso antes.
Em seu especial Make Happy, de 2016, ele define bem a tensão que vivemos entre reconhecimento e ostracismo:
"Se puderem viver uma vida sem plateia, vivam."
O ponto que Burnham quer cutucar é que estamos nos acostumando com a ideia de que tudo o que fazemos deva ter uma audiência, de que tudo em nossa vida pode e precisa ser convertido em conteúdo, de que tudo precisa de aprovação alheia. Aceitamos uma vivencia na qual a plateia é fundamental e mesmo que você não seja um comediante como Burnham, em algum momento do seu dia você estará num palco.
Houve um tempo em que a foto de um prato de espaguete no Instagram parecia o limite moral de nossa relação com o mundo das imagens digitais. Hoje atingimos um ponto sem volta no qual tudo - absolutamente tudo - é conteúdo. Paixões, medos, ódios, inseguranças. A linha que separava o privado do público caiu há muito tempo.
A própria ideia de conteúdo já perdeu o sentido. A palavra "conteúdo" possui um significado diferente do que damos a ela. A maioria do que vemos online não "contém" nada, não possui volume, forma, intensão, inovação, desejo ou razão. Na verdade, o conteúdo digital já não separa nada do restante, mas espalha todo tipo de coisa de modo irrestrito e desmedido.
Quem trabalha com comunicação já percebeu essa equação: o tempo para fazer um post mais elaborado no Instagram demanda tanto tempo quanto a construção de um site simples. Isso não faz o menor sentido. Enquanto a comunicação long reading tem ficado mais fácil e intuitiva (vide plataformas como o Revue, Medium, Substack e afins), os posts de redes sociais estão se tornando um buraco sem fundo onde horas de design e pesquisa resultam em singelos 11 likes. E mesmo quando um post faz sucesso, o que isso quer dizer? A maioria das pessoas não sabe. A maioria das pessoas não ganha nada criando conteúdo feito doidas, exceto a satisfação de ver suas ideias sob os olhos de uma plateia digital cada vez mais sedenta.
A quantidade de esforço para se destacar num canal como o Instagram não é casual. O Instagram (AKA Mark Zuckerberg) não tem nenhum interesse em democratizar o acesso ao conteúdo dos criadores. É justamente essa tensão entre esforço criativo e contato com o usuário que faz o lucro das redes sociais. O Instagram não é uma vitrine, mas uma arena onde a competição por atenção não respeita regras.
O que o Instagram está fazendo é reunindo e controlando uma audiência de bilhões de pessoas e cobrando caro para quem deseja beliscar um pedaço desse mercado. Não basta viver para a plateia, é preciso ainda pagar o Mark para que a audiência ria das suas piadas.
Esses dias, sei lá a razão, entrei num loop de anúncios pagos por pessoas comuns no Instagram. Uma senhora de meia idade posando diante de um ipê amarelo - na legenda um salmo bíblico. Um rapaz musculoso dentro de uma sala de crossfit com a legenda: "o de hoje está pago". Um senhor careca sentado no sofá da sala, congelado num boomerang que repetia um movimento involuntário de sua cabeça. Era possivelmente um vídeo feito por engano. Estamos vendo o surgimento de uma classe de usuários capazes de pagar e criar, por livre e espontânea vontade, uma quarta parede dentro de suas realidades (me lembrei agora de Fleabag) com o intuito apenas de transformar banalidade em conteúdo.
O que fazemos da vida quando não tem ninguém olhando? Que destino damos aos pensamentos que não viram tweets ou ao pôr-do-sol que não vira foto com uma mensagem de autoajuda? Que narrativa construímos quando não há, de fato, nenhuma narrativa a se contar? Uma das coisas mais poderosas que aprendi sobre criatividade é que quanto tudo é narrativa, nada é narrativa. Quando tudo pode ser dito, nada é dito. Quando tudo pode ser mostrado, então não vemos de fato nada. Comecei o meu trabalho no teatro e lá sabemos bem da importância das entrelinhas. Para que a magia aconteça, precisamos manter parte da cena fora dos holofotes.
Nada destrói mais a sua criatividade do que meia hora de scrolling. Essa postura autofágica, onde a mente come a si mesma, gera uma falsa ideia de produtividade, quando na verdade, as coisas realmente importantes da vida não dependem de público para acontecer. O que realmente importa em nosso universo espiritual (espiritual no sentido hegeliano: o mundo das ideias, das artes e da filosofia) não depende da exposição pública, não sucumbe à crítica nem se fortalece da popularidade.
E se viver uma vida sem público não for de todo possível, então que possamos ao menos selecionar a nossa plateia. Fazer da internet um show intimista, para meia dúzia de gatos pingados, com piadas ruins e alguma dignidade.
E o mais importante: que saibamos a hora de encerrar o show e sair nos aplausos.
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links:
As ondas de suicídio e a “doença incurável”: formas de sofrimento psíquico no capitalismo tardio — revistaourocanibal.com
Recebi esse poderoso texto do Rodolfo Londero através da newsletter Dentes Guardados, do autor Daniel Galera. O artigo fala da eterna sensação de que estamos perdendo tempo - ou pior, a ideia de que não temos tempo para a vida de verdade. Neste panorama o suicídio, tema tabu de nossa sociedade, representa uma espécie de "greve da vida".
O que o Milton Santos diria do iFood? — ojoioeotrigo.com.br
Em homenagem aos 20 anos da morte de um dos maiores pensadores brasileiros, o site O Joio e o Trigo fez um incrível episódio de podcast confrontando o pensamento de Milton Santos e a uberização do trabalho. E se você quer saber de onde vem a sua comida e o que acontece na indústria da alimentação, recomendo que leia as outras matérias do site, todas de altíssima qualidade.
Don’t Underestimate the Power of a Walk — hbr.org
Uma das atividades físicas mais simples (senão a mais simples de todas), andar também pode ser um modo de ver a vida. Há toda uma filosofia no ato de andar. Texto em inglês.
A uberização sem volta e a pedagogia do socialismo - Outras Palavras — outraspalavras.net
E por falar em uberização, o texto do Gustavo Barbosa para o Outras Palavras é uma excelente introdução ao tema.
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