Venho de uma família com longa tradição em mágoas. Uma ofensa proferida há anos ainda é assunto no almoço de domingo. Tios que não conversam por causa de um dinheiro emprestado em 1985, primos que se odeiam por conta de uma briga da adolescência. Irmãos, cunhados, sobrinhos, avós e netos, toda uma coleção de pessoas que compartilham o mesmo sobrenome, códigos genéticos e níveis estratosféricos de rancor.
Demorei muito a me perceber como uma pessoa sem família (afamiliar seria um nome possível?). Vez ou outra um parente se casa, um parente morre, mas na soma dos fatos cada um vive dentro da distância.
Bem sei que muitos por aí não sabem de suas origens, mas minha família não se perdeu por causas inesperadas. Venho de um ambiente familiar corroído por dentro por forças poderosas e difíceis de entender. Repleta de pequenas diásporas, minha família foi se fragmentando ao longo do tempo em afastamentos físicos e emocionais muito complexos.
Os desgarrados quase sempre se ajeitam e não ter uma família presente não me impediu de criar uma. Amigos, parentes dos amigos, meu marido, os parentes do meu marido, pessoas especiais que cruzaram o meu caminho e foram ficando. Quem veio de uma família derretida precisa construir seus castelinhos de areia por aí. Ter a responsabilidade criar o seu próprio ambiente familiar faz de você uma pessoa extremamente criteriosa com os amigos. Com o tempo você sabe quem é ponta de lança.
Essa é uma condição mais comum do que parece. Perdi as contas de quantos amigos e conhecidos me relataram o mesmo tipo de estranhamento familiar. Pai ausente, mãe dominadora, irmãos fazendo cosplay de Caim e Abel. Toda família tem suas mazelas, mas algumas são capazes de promover uma destruição total dos laços de afeto e respeito. Neste caso não tem jeito. É aceitar a sina e ir ser gauche na vida.
Os afamiliares (usando uma analogia freudiana: in-familiar, aquele que é semelhante, mas que provoca estranhamento, o deslocamento do afeto) costumam se reconhecer, se juntar, mas de um modo geral o assunto é tabu. É como um clube secreto do qual participamos dentro de um rigoroso código de silêncio. Sentimos vergonha de não ter ceias de natal cheia de risadas, nem casamentos repletos de parentes distantes. Penso quais parentes virão no dia do meu enterro. Minha tia, bolsonarista full time, certamente irá lamentar que um menino tão bom tenha virado comunista.
Deixando de lado essa piada agridoce, sempre me perguntei quais eram os reais motivos que me proporcionaram uma família tão desunida. É uma pergunta difícil, mas algumas hipóteses fazem sentido.
Precisei primeiro entender que nasci numa família pobre. Nem classe média, nem alta. Pobre. Larguei os estudos, comecei a trabalhar muito cedo, formei depois dos 30. Ninguém quer se reconhecer assim, mas se o dinheiro não aparece na sua conta através da mágica da herança você é pobre. Se você depende de salário e de trabalho duro você é pobre. A boa e velha consciência de classe, que tanta falta faz a nós brasileiros, nos ajuda a entender de onde viemos.
Em segundo lugar percebi que conhecer sua genealogia é outro privilégio de classe. Se você sabe detalhes sobre seus avós, bisavós e afins, possivelmente nasceu numa família um pouco mais favorecida. O despertencimento histórico é uma marca latente da pobreza. Sim, existem famílias de origem simplória com uma dedicada coleção de memórias de seus antepassados, mas isso é raro e quase sempre orbita o universo das pessoas brancas, que mesmo quando são pobres, são um pouco menos pobres que os pretos.
Defini que a ansiedade é o que fez minha família se separar. Não a ansiedade comumente ordenada como um distúrbio mental, mas uma ansiedade transcendental, que de alguma forma se mistura com a história do meu país. Dentro de mim estão os genes de tantas outras pessoas que copularam até que eu chegasse aqui. A ansiedade deles é minha. A ânsia deles é minha. Até hoje. Até agora.
A cor da minha pele é uma herança paterna, fora isso todas as minhas referências foram criadas a partir de minha família materna, capitaneada por mulheres pretas, como minha mãe. Minha mãe começou a trabalhar ainda criança, minha avó viveu o mesmo dilema e possivelmente o mesmo tenha ocorrido com minhas bisavós. A necessidade de sobrevivência fez com que cada uma seguisse o seu caminho, sem o amparo que o privilégio familiar promove de modo silencioso.
Como disse, minha mãe é preta e minha avó era chamada de “purí”: mulher preta com traços indígenas. Nascimento, meu sobrenome materno, era muito comum dentro da comunidade de negros libertos. Já a família de meu pai tem raízes portuguesas, possivelmente minhotos que vieram no final do século XVIII plantar cana de açúcar e café na região da Zona da Mata de Minas Gerais. É um pouco mais fácil saber alguma coisa sobre meus antepassados paternos (portugueses, brancos). Quando faço as mesmas perguntas para o meu lado materno encontro somente lacunas.
Conversando aqui e ali descubro que apenas 4 ou 5 gerações me separam de uma senzala. Não é algo tão distante quanto parece. Toda a região onde nasci, no interior de Minas Gerais, ainda possui inúmeras comunidades oriundas de pequenas roças tocadas por ex-escravizados. Lembro-me de visitar, ainda moleque, a casa de alguns primos que moravam na roça. Pessoas pretas que vivam de modo simplório, muitas sem registros de nascimento, guardando de memória os causos de suas origens. Não era raro encontrar aqui e ali os “pretos de cabelo liso”, todos com sobrenome Nascimento e ligados de alguma maneira ao ramo de minha avó. Descobri que os traços indígenas de minha avó vieram possivelmente dos purís e aimorés que viveram no sudeste de Minas. Sabe-se que durante a corrida do ouro inúmeras populações indígenas fugiram para essa região, e que boa parte deles foram dizimados pelos fazendeiros portugueses que arremataram terras para o plantio. É aqui que as pontas se encontram. Esse é o ponto de origem da ansiedade que perdura em meus genes. É aqui que minhas três linhagens se encontram: puris, pretos libertos e portugueses.
Essa divisão social acredito ser uma das chaves para a dissolução de minha família. Os negros libertos viveram uma vida sem informações sobre suas origens (o escravo era visto como propriedade de seu senhor, ficando em registro somente o nome dos donos). Esse apagamento criou inúmeras galáxias familiares que foram se misturando umas com as outras, sempre avançando no tempo, nunca olhando para trás. Em alguns casos, certas tradições se firmaram, comunidades nasceram, mas para a maioria a regra era a mesma: fugir da roça para cidade, sair do interior para a capital. Alguns tios-avôs foram para o Rio de Janeiro, outros para Belo Horizonte e a cada mudança mais um ramo era cortado. O que era deixado para trás caía no esquecimento.
Esse êxodo foi feito ao longo dos períodos mais conturbados da história brasileira: abolição da escravatura, era Vargas, ditadura, plano Collor. E a cada choque econômico, a cada sacolejada no barco da história e da economia, meus tios e tias, primos e sobrinhos, gente que não sei o nome e nunca saberei, foi sendo jogada para lá e para cá.
Tudo na vida dos pobres é cedo demais, urgente demais. Por isso a ansiedade vai se tornando um contraponto permanente, um estado de eterna vigília. Ainda tenho que me policiar sobre a mania de encher a geladeira de coisas, hábito nascido de um medo primordial de um dia novamente passar necessidade. Ainda me bate uma ansiedade irracional quando tenho que comprar uma coisa um pouco mais cara. Medo de não conseguir pagar (mesmo que o dinheiro esteja na conta), medo de que aquela coisa cara, afinal, não sirva para gente como eu. Você cresce, melhora de vida, mas essa tensão é contínua, é uma divisão nascida lá no passado, quando seu tataravô contava as moedas sobre a mesa da cozinha diante de uma prole faminta.
Você só consegue olhar para a sua vida com alguma honestidade depois que compreende que certas ansiedades são também sociais. Certos padrões de comportamento, de afeto e de respeito são também fruto do meio no qual você nasceu. Você não é só o que a vida fez de você, é também um pouco do que a vida fez com os que vieram antes de você. Cada tapa dado, cada palavra dura proferida, cada leite sugado no peito, cada briga. O rancor também é um tipo de memória, um jeito de permanecer. Tanto o amor dado quanto o amor negado possuem o mesmo peso. A presença e a ausência são regidas por forças que vão além das quatro paredes de uma casa minúscula cheia de filhos. O contracheque que não paga as prestações da geladeira, o câncer que cresce silenciosamente, a bicicleta prometida, o frango com macarrão aos domingos, o divórcio, o despejo, o filho inesperado – cada pequeno drama do passado permanece latente em você como uma brasa. Ninguém existe como um ponto isolado no tempo. Nenhuma família surge como uma ilha.
Amar pessoas é difícil, sejam elas pobres ou ricas, donas ou não do mesmo sobrenome. O que digo é que existe um enorme e invisível peso social nas desgraças. Você sempre carregará esse peso geracional, mas não precisa ficar preso a ele para sempre. Dar nome aos mortos é uma forma de mantê-los em seu devido lugar.
Ou como diria Tolstoi:
“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”