Os brasileiros que vão a Portugal de algum modo estão sempre esperando algum tipo de reparação, reencontro ou revelação. Como se houvesse lá um pai ausente que saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. Essa melancolia residual é certamente uma das piores heranças que recebemos deste país. Confesso que sou assim. Portugal ainda parece um lugar feito para retornar.
Há um clichê que diz que Portugal é um país melancólico e essa afirmação, retirando os exageros, tem fundo de verdade. Os portugueses continuam partindo, se não pelo mar, por outras vias, muitas delas simbólicas. Seus monumentos são formas de esticar para o passado uma ponte que se perde na neblina. O nacionalismo, o orgulho e os brasões pouco dizem sobre essa eterna tentativa de voltar para casa, mesmo já estando nela. Os brasileiros tem Portugal por origem, já Portugal continua buscando esse ponto de retorno.
Em dezembro retornei ao país para rever amigos e conhecer lugares que ainda não tinha visto. O guia que nos levou num dia de passeios pelos arredores de Lisboa representa um pouco dessa imagem simbólica. É um rapaz bonito, com o rosto delicado e olhos expressivos. Ele me diz, a caminho do templo de Fátima, que é uma pessoa transgênero. Durante o almoço, exibiu-nos uma cicatriz na altura do ventre. “Me cortaram com faca em Istambul.” Mesmo assim ele diz que seu projeto é de viver algum tempo lá. Está desiludido com o país, mas todos os portugueses estão, em maior ou menor grau.
Numa livraria em Cascais, a livreira, uma senhora que parece viver cercada de livros já há algumas décadas, me pergunta se Machado de Assis era branco ou preto. Preto, respondo. Ela não compreende porque os livros que chegam ao seu acervo ainda estampam um Machado esbranquiçado, como se fosse um lorde inglês. Tento explicar. Falamos de Machado, das frutas da Amazônia e do ouro do Brasil, representado ali numa gravura sobre mineração vendida por 5 euros. A livraria é boa, tem de tudo. A senhora me diz para descer as escadas. Na parte interior fica a seção de obras brasileiras. Corro o olho nas prateleiras. Digo que queria mesmo era saber mais sobre os poetas portugueses, de preferência os contemporâneos. Ela também não parece entender o meu interesse, como se não fizesse sentido abandonar Machado de Assis por um livrinho de Adília Lopes.
Algumas fotos: na ordem: as vielas da Ribeira, no Porto. Detalhe do Mosteiro da Batalha. Casinhas de Nazaré. Claustro do Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa.
Portugal levou do Brasil uma porção de coisas (e também aqui deixou outro tanto), mas nenhuma dessas coisas parece estar mais viva. Não lá. Pelo menos não nas ruas nem nas pessoas. Nossa curiosidade e nostalgia muitas vezes é confundida com importunação. Os portugueses não gostam de perguntas.
Em todas as cidades vejo lojas de lembrancinhas comandadas por indianos e paquistaneses. Paredes decoradas com papéis de parede imitando azulejos, galos de Barcelos e panos de pratos com frases como “I love Lisboa”. São todas iguais, num padrão jamais visto nem mesmo pela máquina comercial americana. A maioria deles não fala português. Enquanto fumo numa pracinha em Cascais, observo dois rapazes fazendo uma chamada de vídeo num idioma que não compreendo. Parecem orgulhosos de sua loja e mostram um punhado de sardinhas de porcelana para a pessoa na tela. Perguntei ao dono do restaurante (um português boa praça casado com uma paraibana) o motivo de tantos. “Tráfico de pessoas”, ele disse. Talvez sim, talvez não. O fato é que existe toda uma Bombaim lusitana, pessoas isoladas numa bolha vivendo num país que não os absorve, só os observa. Falar o próprio idioma se torna um modo de se agarrar às origens, um jeito de jamais sair de casa em definitivo, um gesto de vingança. Um amigo me disse certa vez: o problema dos portugueses com a gente é que nós brasileiros se misturamos bem, somos como água. Vai ver é isso.
Vidas passadas
Por esses dias vi o filme Past Lives (2023) de Celine Song. Nele dois amigos de infância, Nora e Hae Sung, se separam depois que Nora se muda da Coréia do Sul para os Estados Unidos. Nora reencontra Hae Sung muitos anos depois e o amor que eles viveram no início da adolescência ressurge como um chamado às origens.
Nora vive uma boa vida. Está casada e tem por seu marido um amor confortável. Nem arrebatador, nem idílico. Confortável. Já o amor que ela sente por Hae Sung surge em cena como um incômodo, como uma memória residual persistente e sublime mas que não pode ser verbalizada ou vivenciada. Não se trata de uma nostalgia romântica agridoce e clichê, mas de um sentimento represado e sem nome, um reconhecimento a partir do rompimento.
Numa cena absurdamente bela, os três, Nora, seu marido e Hae Sung, vão a um bar. Nora e o antigo amigo falam em coreano sobre assuntos absolutamente íntimos. Neste ponto sabemos que o marido de Nora aprende coreano numa tentativa de se aproximar da esposa (numa cena ele diz: “Você sonha em uma língua que não consigo entender. É como se houvesse todo esse lugar dentro de você que eu não posso ir”), mas não sabemos ao certo o quanto ele entende da conversa. Na prática, a distância entre os personagens não é apenas linguística, mas espiritual. Transcende o sentimento e o lugar. É a distância elementar entre duas pessoas, uma distância muitas vezes confundida com algo físico.
Existem muitas formas de amor e a maioria delas é incompleta. Amizades que não passam de um verão, namoricos de adolescência, empatia gratuita e imediata com pessoas que jamais veremos novamente. Afinidades tão profundas quanto breves. Quase sempre me esqueço dos lugares que visitei, mas nunca me esqueci das pessoas que conheci nesses lugares.
Reencontrei em Portugal amigos distantes, pessoas pelas quais mantenho um profundo carinho, mas que não são parte presente em minha vida. Elas estão lá, congeladas num cenário que não me pertence, vivendo suas vidas de um modo totalmente diferente do meu. Toda aproximação já pressupõe o abandono. Gostar de alguém, ou de alguma coisa, também é um gesto de afastamento. A aproximação total de um objeto não o torna mais presente. É a distância que permite uma visão mais clara, apreciativa e coerente.
O espaço entre o amante e o objeto amado é também parte do ato de amar.
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Penso que esse espaço entre o amante e o objeto amado seja o responsável por fazer com que o outro se exerça de maneira livre, sem exigências, apegos e expectativas. É onde se abriga o amor verdadeiro em qualquer tipo de relação. E para isso, não é preciso necessariamente estar longe fisicamente. Espaço a gente dá e recebe mesmo estando um ao lado do outro. Talvez tenha mais a ver com sentir-se livre, do que com que com estar distante. Texto excelente!
Nossa, que sensível. Amei.