Sangue, sinceridade e chamas
"Sempre tentei. Sempre Fracassei. Não importa. Tente de novo. Fracasse de novo. Fracasse melhor."
Samuel Beckett
Geralmente faço no fim de ano uma lista com as melhores séries, livros, filmes e textos que li. Desta vez não vai rolar. 2021 fui um ano sofrido. Salvaram apenas as vacinas, a terceira de Succession e dois ou três livros que eu não vou resenhar. Não vou fazer você perder o seu tempo tentando te convencer de que há alguma coerência por aí. Tudo é horrível.
O que mais vi em 2021 foi o medo de fazer coisas, medo de vender o seu peixe, de criar um trabalho ruim, medo de realizar alguma coisa medíocre diante do escrutínio alheio. O mundo precisa de mais um livro de poesias? Precisamos de mais uma newsletter, de mais um podcast, de mais um blog, de mais um textão? O mundo precisa de mais autores atormentados, de mais designers indecisos, de mais atores e atrizes, de mais artistas, blogueiros e criadores de conteúdo? Afinal, tem tanta gente fazendo bem o que fazemos mais ou menos... será que vale a pena?
Sim, vale. O mundo precisa de mais. Todas as ideias grandiosas que protelamos são necessárias. Todos os livros ruins precisam ser editados, tudo que há pra ser dito precisa ser dito do modo que eu e você achamos que deve ser.
Esses dias li num jornal literário que autores iniciantes não deveriam lamentar, não deveriam escrever histórias sobre si mesmos (o famoso texto do autor atormentado que escreve sobre um autor atormentado), que deveriam falar de coisas arrojadas e “disruptivas”. Galera, não há mais nada para ser disrompido. De Shakespeare pra cá tudo o que fazemos é contar as mesmas histórias com novos arranjos. Ninguém tem que se preparar mais, nem aprender mais nada antes de se lançar. É no lance que a coisa funciona. Não existe erro em termos de criatividade. Fazedores fazem, aprimoram suas capacidades sob os olhos do público e tocam o bonde. Não existe isso de “tema batido demais”. Todos os temas são batidos demais. Pintores pintam, escritores escrevem, criadores digitais criam coisas para as redes. Fim de papo.
Acertar é superestimado. Ter sucesso também. Ser bom em alguma coisa quer dizer que você não está nem um pouco se fodendo para o que os outros pensam, quer dizer que nos destroços do fracasso você encontra um ou outro pedacinho reluzente. Emil Cioran, que foi um filósofo do erro, não tinha nenhum interesse pelo acerto. Viveu fascinado pelos derrotados. É dele a frase:
“Somos todos impostores que nos suportamos uns aos outros. Quem não aceitasse mentir veria a terra fugir sob seus pés: estamos biologicamente obrigados ao falso.”
É tudo balela. Tudo mentira. E isso não quer dizer que não exista graça em criar, ser reconhecido e ter algum sucesso. Quer dizer que fazer as coisas com paixão é mais importante do que fazer as coisas bem. São muitas páginas jogadas no lixo até o livro pronto, são muitos rascunhos até uma linha digna. Se a maior parte da vida de uma pessoa criativa é feita de erros, por que renegar o erro? Há, nas pessoas pequenas e silenciosas, uma graça que não é respeitada. Na dúvida mora uma certeza que não pode ser descartada.
Ainda segundo Cioran:
“Não há lirismo autêntico sem um grão de loucura interior. […] Diante do refinamento de uma cultura aprisionada em formas e limites que mascaram tudo, o lirismo é uma expressão bárbara. Eis de fato o seu valor, o de ser bárbaro, ou seja, de ser só sangue, sinceridade e chamas.”
O que sobra é o prazer de fazer, o prazer de se dar. Nada é bom o bastante. Nada. Tudo de bom que há no mundo decai sem remédio - e mesmo assim criamos. É preciso tentar, tentar e tentar. É preciso dar a cara a tapa, fazer peças ruins, lançar livros para dois ou três amigos e cantar para uma plateia entediada, não pela glória futura, mas pela chance de fazer agora e do seu jeito aquilo que você quer fazer.
Do seu jeito, não de outro modo. Não do modo mais certo, mais novo ou mais popular. Fazer como tem de ser feito. Fazer seu.
Nos vemos ano que vem.
Alguns links
Como ter menos foco e ser cada vez mais menos produtivo — medium.com
Tem texto novo lá no meu blog com algumas dicas para uma vida menos focada, menos produtiva e repleta de preguiça e de "amanhã eu faço".
Birds Aren’t Real, or Are They? Inside a Gen Z Conspiracy Theory. - The New York Times — www.nytimes.com
Inserindo mais uma teoria da conspiração na lista, a onda agora é acreditar que pássaros não são reais, mas drones criados pelo governo americano. Em inglês.
Filmes Brasileiros no YouTube (Brazilian Movies on YouTube), a list of films by Henrique Correia — letterboxd.com
O Henrique Correia realizou uma das maiores façanhas da internet neste ano: criou uma lista com mais de mil filmes brasileiros disponíveis no Youtube. Tá lá no Letterboxd.
Antropóloga atacada por um urso: “Enquanto mordia minha cara, pude ver o interior de sua boca. Foi horrível” — brasil.elpais.com
Natassja Martin fala de sua experiência de quase morte e contato com a força natural no livro ‘Acreditar nas feras’, recém lançado no Brasil pela Editora 34.
'Succession' Theme Song Explained By The Composer
Ainda na onda da melhor coisa que assisti em 2021, o compositor do tema de abertura de Succession, Nicholas Britell, mostra como criou a trilha sonora icônica da HBO.