O marinheiro e o vendedor local
Algumas anotações sobre viajar, escrever e cidades que jamais conheci
Walter Benjamin em seu famoso ensaio sobre o narrador faz uma comparação entre o marinheiro e o comerciante local. O marinheiro é o narrador que traz notícias de mundos distantes, é aquele que descobre coisas novas para além de sua realidade local. Sua narrativa nasce da locomoção, ele está sempre partindo. Ele só pode narrar o que está além. Em terra firme sua energia se esgota rapidamente.
O comerciante local é aquele que jamais deixa sua vila. Sua narrativa nasce da imobilidade. Preso a uma vida fixa, a rotina o engole de tal modo que sua única forma de escape é a narrativa. Ele não parte, se movimenta dentro e ao redor de si.
O marinheiro é Hermes. O comerciante local é Héstia.
Hermes jamais entra, ele comanda tudo o que existe da porta para fora. Sua vida é partir, levar e trazer. Ele é o mensageiro e também a mensagem. Héstia é o fogo central da casa, é o acolhimento e o gesto de contar sempre a mesma história com um tom diferente. Hermes é o tropeiro, o motoboy, o flaneur. Héstia é o avô sentado, é a roda de papo furado, a conversa entre amigos.
Existem autores que dependem do deslocamento para escrever. Paul Bowles é o nome que mais me chama a atenção. Todas as suas histórias são sobre o contato com o desconhecido que existe em outros lugares. Bowles quase sempre termina suas narrativas com algum encontro horrível, seja com a morte ou algo pior que ela: o desaparecimento. Recomendo O céu que nos protege, tanto o livro quanto o filme de Bertolucci.
Calvino, Hemingway, Borges, Kerouac e Saramago de certo modo também foram marinheiros. Escreviam sobre estradas, pontes, cidades, paisagens petrificadas por um sentimento eterno de dépaysement (sentir-se fora de lugar, seja num país estrangeiro ou mesmo diante de algo que deveria ser familiar). Suas narrativas abraçam o gesto de partir em todas as variações mais malucas: labirintos, estradas americanas, ferrovias, ilhas misteriosas, cidades espelhadas…
Emily Dickinson e Marcel Proust são os exemplos mais conhecidos de narradores locais. São escritores que nunca saíram de casa e por isso mesmo tiveram que trazer o mundo para dentro de seus quartos.
Espera-se que o autor seja alguém com uma vida extraordinária, que viaje o mundo para apreender certos temas, mas viajar é caro. Sem contar a perturbação enorme que é partir e voltar.
Sobre os países que visitei (não foram muitos), escrevi pouco. A memória desses lugares sempre me parece falsa, como se outra personalidade estivesse perambulando pelas ruas.
Durante dois anos escrevi para uma agência de marketing produzindo conteúdo para blogs de viagens. Istambul foi a cidade sobre a qual mais escrevi, tanto que em certo momento eu tinha a mais absoluta certeza que a conhecia de verdade.
Aconteceu certa vez que o dono de um desses blogs me contatou (não era comum isso acontecer, o texto seguia com espaços em branco que deveriam ser preenchidos pelo autor, a agência não me permitia saber para qual site eu estava escrevendo), queria saber sobre um restaurante em Gálata que eu havia descrito de modo muito particular. Fiquei sabendo que o dono do blog só havia estado em Istambul uma única vez por apenas um dia, enquanto esperava uma conexão para a Ásia.
O dono do blog havia estado lá e pouco sabia. Eu conhecia sem ter estado. Ele era o marinheiro que partiu e voltou sem muita coisa pra contar. Eu era o comerciante local que inventava causos pra passar o tempo.
Sempre penso de um dia escrever uma história sobre alguém que escreve sobre cidades as quais jamais pisou. Vamos ver se um dia sai.
Viajar só faz sentido depois da volta. Só em casa, mergulhado em sua rotina, é que o viajante pode entender o que visitou.
Se não me falha a memória, foi Alain de Boton em seu excelente (e assustador) livro A arte de viajar, que relatou o dia em que viu, em Amsterdã, uma pessoa entrando descompromissada numa portinhola de uma casa qualquer. Essa imagem iluminou nele a ideia de que poderia viver ali, poderia ser aquela pessoa tão especial e estranha. Mas esse sentimento é falso. Viajar é saber o que você nunca será.
Eu nunca serei a velha romena ajoelhada no chão em frente a Santa Croce de Florença em pose de súplica pedindo alguns trocados. Eu nunca serei o casal de jovens italianos que habitava o apartamento abaixo do meu em La Spezia e que se deitava no chão frio da sala assistindo desenhos infantis no dia em que os termômetros marcavam 41 graus. Eu nunca serei a travesti que cortava a via Labicana em Roma fumando longos cigarros com um ar perdido e triste e ainda assim muito elegante com seu vestido vermelho rendado. Eu nunca serei a mocinha francesa que um dia me sorriu enquanto eu tirava fotos em frente ao Jardim de Tuileries. Eu nunca serei o guarda musculoso do museu Malba de Buenos Aires que arrancava suspiro das adolescentes que viam, sem prestar muita atenção, a exposição maluca de Leandro Erlich. Eu nunca serei o vinhateiro esloveno que acenou para mim enquanto dirigia um mini trator carregado de uvas brancas numa manhã fria em Brda. Eu nunca serei o senhor português com longos bigodes grisalhos que um dia me ofereceu haxixe dentro de uma caixa de óculos Ray Ban enquanto eu descia a ladeira do castelo de São Jorge. Eu nunca serei o pescador que arrastava sua rede para dentro de um barco chamado Donzela em Santa Cruz de Cabrália no dia em que eu pisei numa concha pontiaguda e cortei o pé. Eu nunca serei o casal de namorados que trocava carícias deitado sobre as rochas quentes de uma praia de areia escura em Lepanto. Eu nunca serei o rapaz que agitava a bandeira amarela da festa do Palio de Siena.
Eu sei que já falei sobre isso, mas quem não anuncia seu peixe não paga as contas do mês. Meu primeiro livro de contos sairá em breve pela editora Telha. Para reservar o seu exemplar autografado com uma arte exclusiva, basta me mandar um oi no valternascimento@me.com.
Até breve.
Olá, Valter!
Acabei de descobrir você por meio de uma pesquisa aleatória no Google. Já peguei algumas boas referências de alguns textos seus e não poderia deixar de vir aqui e deixar um “oi!”.
Esse texto, em especial, me pegou! A comparação entre o marinheiro e o vendedor local é excelente. Diferentes personalidades e inclinações do homem. Que maravilha de diversidade! O parágrafo sobre Hemingway e o gesto de partir me fez lembrar da história do velho Santiago. Viajar é contemplar, até mesmo nas viagens que fazemos no quarto.
Um prazer te descobrir por aqui, Valter! Aproveito e deixo meu convite para conhecer minha newsletter também. Adoro divagar sobre esses assuntos ordinários. Até mais!