O excesso de informação e o ponto final
"O excesso de informação faz com que o pensamento definhe. A faculdade analítica consiste em deixar de lado todo o material perceptivo que não é essencial ao que está em questão. [...] A enxurrada de informação à qual estamos hoje entregues prejudica, evidentemente, a capacidade de reduzir as coisas ao essencial. "Byung-Chul Han, No enxame - Perspectivas do digital
Quatro lados de informação
Comecei a escrever com regularidade no Medium em meados de 2015. De lá para cá a plataforma que se apresentou como um oásis no meio do ruído digital foi ficando mais parecida com uma rede social. Não apenas na relação entre usuários, mas na própria distribuição da informação.
Observe a interface de uma rede social. Todos os cantos da tela são úteis, clicáveis, oferecendo ao usuário um novo caminho informativo. A rede social tem horror ao vazio, ao espaço de respiro, a pausa.
Não é um fenômeno novo. Houve um tempo em que o Instagram era apenas um espaço para fotos de jantar e pôr do sol. Hoje vemos esses ambientes digitais mudando sob o ritmo do algoritmo e da economia do engajamento. E com o Medium não foi diferente.
Quem acessa o Medium hoje encontra o campo de tela preenchido por todos os 4 lados por links diversos. O texto, que sempre foi o centro focal da rede, apresenta-se quase como um detalhe. A leitura limpa e uniforme deu lugar a uma navegação "otimizada" na qual novos links se apresentam indicando que sempre há mais e mais para ler.
O problema dessa lógica do hipertexto desmedido é que o conteúdo escrito nunca se encerra. O usuário é levado sempre a uma nova página, e outra e outra, num looping que não difere muito daquele que vemos em redes como Youtube. Esse "Rabbit Hole" infinito distorce a informação na direção de uma comunicação em três pontos (...) e nunca na direção de um ponto final (.).
A importância do ponto final
A comunicação em três pontos (...) envolve uma questão moral (coletiva) e ética (individual). Ler é sempre um ato ético, uma vez que insere dois sujeitos frente a frente mediados por uma informação. Quando essa informação não se encerra, o leitor abandona seus posicionamentos preliminares em busca de um novo ponto de vista. Não há uma decisão ética sólida pois a informação apresentada não é, ela mesma, sólida, inserida num campo semântico claro. Na comunicação dos três pontos a informação é um gancho para um contexto vindouro, sem encerramento presente.
Não é possível compreender os diferentes pontos de vista dentro de um ambiente digital porque cada ponto final (.) abre uma comunicação em três pontos (...). Não há pausa crítica nem a chance de condensação da informação em pontos de sentido, uma vez que o sentido e a história estão sendo feitos ao vivo e na velocidade dos tweets. As opiniões se contradizem e cada contradição abre um novo caminho.
A moldura informativa que fecha os 4 lados do campo visual do leitor convidam a olhar o outro lado, não de forma isenta , mas sempre já emitindo uma opinião subentendida. É o famoso "vamos ouvir o outro lado". A argumentação de que uma gafe ou fake news foram "tirados do contexto" é dúbia porque não há contexto fixo na internet. Tudo está em movimentação constante e a informação incompleta não permite um julgamento moral e ético consistente.
A fratura da verdade
Embora o bloqueio de informações seja mais do que nunca uma arma de guerra, a verdadeira munição bélica é a superinformação. Ampliar a verdade até que ela perca o seu sentido.
Acontece algo muito curioso quando ampliamos a verdade. Ela parece falsa. Quando alguém repete insistentemente algo verdadeiro, ocorre, nesta repetição, um esgarçamento da verdade. Um bom exemplo é a eficácia das vacinas contra a Covid-19. Embora saibamos que vacinas são eficazes, a ampliação dessa verdade faz com que ela soe, de certo modo e para certas pessoas, como algo falso. Existe na verdade uma fratura que se amplia na medida em que a mesma verdade é dita sempre e sempre. Afinal, o que é verdadeiro, não precisa ser dito.
Na linha oposta vemos que a mentira sofre um efeito reverso. Repetir e ampliar uma mentira cria-se um efeito de possibilidade. Algo muito absurdo, como as teorias do grupo Q-anon ou a tese da Terra Plana, parece, de algum modo e para algumas pessoas, algo possível graças a repetição. Como coisa fragmentada que é (a mentira sempre apresenta-se como pedaços de narrativa sem centro) o fato falso possui a possibilidade de aglutinação que falta à verdade. A verdade está definida, ela existe sobre uma base plausível e por isso mesmo cabe ao indivíduo fraturá-la sob o olhar crítico. Enquanto isso a mentira demanda no indivíduo o olhar organizador que busca dar sentido ao que não faz sentido, porque a própria experiência da mentira é pontuada pela possibilidade da verdade.
Essa não é uma experiência exclusiva da internet. As artes em geral são formas de mentira fragmentada e aglutinada ao redor de um sentido dado pelo sujeito. Veja o caso do cinema, onde coisas absurdas parecem reais por um período de tempo até voltarem a ser mentira. A diferença é que quando essa dialética é aplicada ao mundo digital a fronteira do real torna-se turva. Não há um apagar de luzes que faça o usuário do Facebook voltar ao mundo de verdade. A narrativa falsa não é delimitada pelo ponto final e se não há um encerramento narrativo o espaço virtual (imaginativo) e real (empírico) se mesclam.
Existem muitas teorias da comunicação digital tentando explicar esse fenômeno no qual o real exposto parece falso e o falso, quando visto sob o a luz das mídias digitais, parece verdadeiro. Mas um ponto me parece evidente: essa distorção é fruto da própria lógica da comunicação digital, que jamais encerra nenhuma narrativa, que jamais se afasta dos fatos com olhos críticos.
Quando digo que ler é um ato ético, me refiro ao gesto de afastar os olhos do livro ou do jornal em busca de uma pausa. Ler, interpretar algo, exige encerramento. Não poderíamos ler Madame Bovary ou Dom Casmurro se essas fossem narrativas ficcionais sem ponto final. É o encerramento que abre caminho para a avaliação subjetiva. Lemos, compreendemos a mensagem e não há nada ao redor da página nos dizendo que existe um outro universo informativo no qual Emma está viva ou que Capitu tomou um novo rumo na vida. É o ponto final que faz a ficção algo sublime.
No caso da história e da notícia temos narrativas constantemente abertas, pois são baseadas no próprio fluxo dos fatos da vida. Mas antes da internet e das redes sociais, havia uma fronteira entre vida e narrativa jornalística e historiográfica. Alguém colhia as informações e as publicava num universo fechado e com ponto final. Nem sempre esse universo era ético ou moralmente coerente (Francis Fukuyama virou motivo de piada depois do estrondoso sucesso de seu artigo O fim da história, que se provou incoerente), mas o julgamento da informação e a correção histórica do fato aconteciam a posteriori (depois dos fatos) e não in media res (no meio dos fatos). A narrativa do que acontece no mundo tinha um delay, uma pausa necessária para avaliação crítica e implementação de uma postura ética diante do que era apresentado. Essa pausa foi descartada em nome da atualização em tempo real, da sensação de ver os fatos se desdobrando diante dos nossos olhos.
Não é coincidência que a comunicação digital tenha destruído os jornais, revistas e livros de papel. A mídia impressa é antagonista da comunicação digital porque são mídias com ponto final. Um livro ou uma edição de um jornal impresso não permitem o live feed, a informação ali deposta, certa ou errada, ética ou antiética, é algo "encerrado". A revolução da comunicação digital será sempre uma revolução contra o ponto final e a favor dos três pontos.
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Alguns links
A vida por um tuíte — piaui.folha.uol.com.br
Nessa matéria da revista Piauí de 2015, vemos a história de Justine Sacco, uma importante executiva que teve sua vida virada do avesso por conta de um tuíte infeliz.
Telegram, o novo refúgio da extrema direita — www.nucleo.jor.br
A matéria especial do site Núcleo conta como o aplicativo de mensagens Telegram virou rota de fuga para políticos radicais e apoiadores que sofreram sanções em outras plataformas digitais.
Rádio Londres, o misterioso caso da editora cult que desapareceu em 2020 — tab.uol.com.br
Falamos em desaparecimento de livrarias, mas nesse artigo da Tab UOL temos a história da editora Rádio Londres, que surgiu em 2015 como uma ousada e promissora editora independente e simplesmente sumiu do mapa.