Outro dia desses abri um conto que comecei a escrever há exatos 10 anos. Sim, 10 anos. O documento Word mantinha a data da última revisão: fevereiro de 2014. O conto, ou rascunho de conto, dizia assim:
“Num vilarejo qualquer, um garoto atira uma pedra contra a vidraça. A pedra bate no vidro, abre uma rachadura, mas o vidro não quebra. Os dias passam e os moradores da casa não percebem a rachadura. A rachadura no vidro causa no garoto uma profunda perturbação. Ele pensa em dizer o que fez, pensa em atirar uma outra pedra, mas não consegue se decidir. O tempo vai passando e a cada dia o garoto observa mais e mais a vida da família que vive naquela casa. Por que eles não perceberam a rachadura? Acontece algo ali que lhes tire a atenção?”
É uma boa ideia para um conto e não o terminar cria um estranho prazer.
Se não termino o que iniciei, posso gozar do prazer de mostrar esse conto a um amigo e ouvir um elogio. “É muito bom”, diz o amigo, e respondo: “E olha que nem está pronto!”.
Se o amigo me diz: “não me parece bom”, posso argumentar em seguida: “Ah, mas não está pronto ainda”.
Ou seja: não terminar algo produz uma suspensão consensual em direção a uma possibilidade. Terminar o conto me obriga a colocar um fim no horizonte de eventos e a aceitar minhas qualidades e fraquezas. Terminar é um gesto de coragem.
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Num artigo de 1992 chamado Postscript on the Societies of Control, Gilles Deleuze diz: “nas sociedades de controle, ninguém nunca termina nada”.
Para Deleuze, essa não seria uma imposição social e sim uma “geometria da linguagem”, uma orientação implícita que leva o indivíduo a um eterno estado de insatisfação com o fim das coisas.
Uma sociedade que não termina nada está sempre cambaleando de cansaço. Para alguém com passado analógico como eu, a impossibilidade de desviar dos chamados para iniciar algo novo é aterrorizante. Quem desembolou fita K7 com caneta Bic jamais se acostumará com a rapidez maquiavélica com que os celulares leem um QR code.
Numa sociedade que não termina nada tudo é propaganda. A propaganda (ou melhor, o marketing) é a presença onipresente do não-concluído. Há sempre um novo produto, um novo começar. Tudo é convite. Já não é possível navegar em nenhum site sem ser soterrado por anúncios. Se um dia você pesquisou por roupas de cama de algodão de 300 fios, saiba que as propagandas da MMartam irão te perseguir até o túmulo – mesmo que você um dia compre os malditos lençóis.
Celulares, computadores, tablets e outros dispositivos já vêm de fábricas com aplicativos de marketing que não podem ser removidos. Minha tv tem no painel principal um punhado de links, botões e banners que piscam a todo momento. Trocar de canal se tornou um jogo de campo minado. Um clique em falso e você é direcionado para a nova temporada de Emily em Paris (mon dieu!).
Em uma sociedade que não termina nada tudo passa a ser serviço. Serviços não contemplam a satisfação plena, são atos de perpétuo fluir. O desaparecimento da mídia física é talvez o maior gesto de canalhice da era contemporânea. Tudo o que podíamos comprar de modo definitivo agora se apresenta como uma ‘experiência’. Músicas, filmes, jogos, programas. A digitalização abre novos caminhos e possibilidades, mas também segmenta qualidades que antes eram inerentes ao modo como usamos o entretenimento. Um álbum em CD ou vinil sempre ofereceu uma qualidade de áudio superior, mas se você desejar aproveitar essa qualidade agora terá que pagar um bônus pelo serviço premium.
Concordo com Deleuze. Parece haver um tipo de gozo elementar em não terminar nada, um tipo de masoquismo consciente que mira no eterno desejo de continuar. É o não gozar por inteiro, ou adiar o gozo como se o prazer dependesse da ideia de que aquele processo irá começar mais uma vez, e outra e outra. Já encontramos na arte o horror ao término das narrativas. A arte se apresenta agora como um fluxo que não pode ser interrompido. Ao eliminarmos o fim da experiência artística, seja ela qual for, a obra deixa de ser arte e passa a ser produto (vide Walter Benjamin e Guy Debord).
A arte que não caminha para um fim se apresenta nas exposições imersivas, onde os girassóis de Van Gogh rodopiam em projeções feitas para gerar ótimas fotos no Instagram. Um quadro, em sua estática simplicidade e finitude (a imagem pintada está condicionada a uma margem, que é seu fim físico e histórico), parece pouco, soa como algo sem graça. A arte passa a ser vista como um repositório para continuações nos mais diferentes meios. A palavra final do artista é descartada em nome do eterno gozo do adiamento do fim.
O que Deleuze, já em 92, previu como uma praga social hoje se apresenta como uma regra confortável. Temos horror ao fim, seja o fim de um filme, de um livro ou de nós mesmos. Tudo é feito para esticar a presença das coisas. E aqui temos um fato curioso: as experiências realmente únicas só o são porque são finitas. Quando tentamos adiar o fim de algo transcendental (uma obra de arte, um livro ou algo ainda mais elementar como a nossa memória, agora esticada através de uma produção massiva de imagens, vídeos e outros rastros digitais) essa coisa imediatamente perde sua função. Registrar nossa vida nas redes sociais não nos oferece uma visão mais clara sobre o nosso passado. Conhecer mais sobre o mundo não amplia nossa informação. Tudo isso porque esticamos processos que dependem do fim. A manifestação do fim é o que torna nossas experiências realmente especiais.
Não é que não desejemos terminar nossos processos. Nós desejamos terminar, concluir, encerrar. Ocorre que somos premiados pela não terminação. Uma vida suspensa, sempre em busca de algo novo, de um novo começo, parece mais real e coerente do que uma vida feita de encerramentos. Conhecer novos países, assinar um novo serviço de streaming, ver o mais novo filme da Marvel. Spin-offs, Fanfics, artistas mortos revividos por inteligência artificial. Comprar um novo rosto de ácido hialurônico, dar ao corpo um novo formato através de dutos que esculpem com gordura. Fazer um remake de si mesmo a todo momento. Na sociedade em que ninguém termina nada todos precisam vender e comprar a todo momento. Nada é consumido de verdade, tudo é “experimentado”, “atravessado”. Terminar algo é um gesto de rebeldia.
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