Todo fim de ano tenho o costume de fazer uma limpeza geral. Abrir armários, jogar fora coisas velhas, reorganizar os livros, separar para doação roupas que não servem mais. Não tem nada de especial nisso. Em dezembro, todo mundo é tomado por esse sentimento de “vamos colocar as coisas no lugar antes que a Terra inicie mais uma volta ao redor do sol”.
Também tiro um tempo para colocar em ordem o computador. Deletar arquivos, organizar pastas, remexer em projetos guardados. Já faz um bom tempo que abrir abas demais não me apavora. É assim que as coisas funcionam: comece muito, termine o que vale a pena, esqueça o resto. Rabiscos de textos jamais concluídos, centenas de favoritos salvos que poderiam ter sido um artigo, um poema, um conto, um começo. Imagens para colagens, esboços de desenhos, comprovantes de pagamento, fotos de onde estacionamos o carro, cartões de embarque, dicas de restaurantes, de hidratantes, de séries de tv. Fotos de gato (muitas), mensagens de bom dia do grupo da família (muitas), fotos enviadas em conversas que não me lembro mais. Prints de tela dos mais variados: artes interessantes (Man Ray, Twombly, Francis Bacon), filmes para ver (Jurado #2, Mama Roma, A substância), livros para conferir (os poemas inéditos de Hannah Arendt, alguma teoria do design gráfico, Um antídoto contra a solidão, do David Foster Wallace). Um baú de entulhos digitais tão etéreo quanto presente.
Cada recorte me lembra de que não é mais possível viver sem deixar um rastro digital, como uma lesma que se arrasta sobre uma superfície de pixels. Nesse pequeno compêndio de gestos inconclusos, uma coisa substitui a outra, uma novidade apaga a outra e o passado não pode ser esquecido. O tênis que eu não comprei irá me assombrar para sempre nos anúncios de sites e redes sociais. O Google Fotos vai me lembrar de que em 2014 eu era mais magro. A última interação com um amigo distante irá esfriar e descer a lista de conversas até ser arquivada e depois deletada.
O seu Eu de hoje versus o seu Eu de ontem. Os seus gostos atuais contra o constrangimento de ontem. A vergonha e o arrependimento também estão nesse carrossel infernal. Uma mensagem infeliz, uma curtida descuidada na foto de alguém que você definitivamente não gosta. A amiga que casou e não te convidou, aquele cretino de longa data que parece viver viajando pela Europa. Nostalgia e inveja, revanchismo e dismorfia. Não é mais possível organizar nossas gavetas digitais. Spam e documentos importantes ocupam o mesmo espaço de atenção, senhas esquecidas e logins não autorizados se alternam a cada tentativa de acessar qualquer porcaria de site. Chamadas não solicitadas, pedidos não atendidos. Ninguém consegue mais ouvir o telefone tocar sem ter um pequeno infarto. Some a isso as mensagens de áudio. Neste ano a maior mensagem foi do jardineiro: 5 minutos e 22 segundos. Metade destes explicando a diferença entre a grama São Carlos e a grama esmeralda.
Compras feitas por impulso, impulsos gerados por produtos, produtos impulsionados por produtos. Um ouroboros alimentado por dancinhas, influenciadores e compras paradas há duas semanas em Cajamar. Não há salvação. O que podemos fazer é pular de tela em tela, de emoji em emoji, fluir de caos em caos, tentando entender como entregamos nossos pensamentos, memórias e desejos a um pedaço de vidro e metal.
Heidegger tem um ensaio essencial sobre a comunicação. Na coletânea de conferências A caminho da linguagem, ele discorre, dentre outros temas, sobre como a poesia diz o que diz. Heidegger enxerga a linguagem como uma solução em si mesma. Nós não usamos a linguagem, é ela quem nos usa. Vivemos para dizer o que a linguagem diz. Há linguagem em tudo, a questão é que nem sempre somos capazes de entender o que um determinado sistema diz. Daí a importância da poesia, já que ela é capaz de criar sistemas simbólicos portáteis e especiais que não querem comunicar uma ideia clara, mas exercitar a nossa capacidade de servir e ser servido pela linguagem.
Assim como a poesia, o caos imersivo da vida digital também apresenta um universo simbólico próprio. Fotos desfocadas, boletos vencidos, comprovantes de pagamento, qr codes, prints de tela, links quebrados, emails enviados ou recebidos por engano - tudo isso representa um jeito de dizer e de ouvir, de se fazer presente e de ser visto, um jeito de não esquecer.
É poético que vez ou outra algum desconhecido me mande uma mensagem com uma pergunta aleatória: Você vem hoje? Já comprou a calça do Victor? Certo dia a moça que vende quitutes por encomenda me mandou o cardápio com a seguinte legenda: só não tem a cueca alemã. Era cuca. Em 2024, enviei pelo menos 3 emails com a palavra “peido” no lugar de “pedido”. A retrospectiva do Google Fotos incluiu fotos do centro de Berlim. Eu nunca fui a Berlim e percebo que as imagens foram enviadas por um amigo, mas para o Google o Portão de Brandemburgo fará parte da minha história, junto a uma foto de uma caixa de analgésico, a foto de um pão que fiz num domingo de agosto e a Zendaya numa cena de Rivais.
E é bem provável que para muitos de vocês esse texto se torne mais um entulho esquecido na caixa de spam ou lido pela metade e imediatamente deletado - mas não faz mal. No implacável moinho digital tudo está a todo momento sendo triturado e convertido em coisa nova para, então, se tornar velho de novo. Empresas de inteligência artificial poderão usar essas palavras para treinar modelos robóticos capazes de fazer você comprar um novo tipo de organizador de gavetas, ou talvez uma passagem para Berlim. E isso é, também, um tipo de eternidade.