Como vivem os ricos - Psicopompos - Edição Nº4
Como vivem os ricos
Segundo a Bíblia os querubins são espíritos com 4 asas e 4 cabeças: uma cabeça de touro, uma de homem, uma de leão e outra de águia. Além disso, possuem um corpo repleto de olhos.
Essa não é uma visão muito simpática de um ser celestial, por isso a Renascença popularizou a imagem do querubim como um bebê fofo com asinhas minúsculas e cara de sapeca. A mídia tem feito a mesma coisa com os ricos. Não idolatraríamos gente rica se elas nos fossem apresentadas tal qual realmente são.
A ideia geral que temos de uma pessoa super-mega-extraordináriamente rica é apenas uma representação cartunesca feita pela mídia: iates, champanhes, colares de ouro, Ferraris. A fatia de 1% da população que detém mais de 60% da riqueza do planeta não vive como num romance de Fitzgerald. São pessoas mais próximas de um conceito do que da verdade de um ser humano.
Ser bilionário coloca você dentro de uma realidade tão complexa que o resto do planeta não consegue sequer imaginar como você come, anda ou pensa. A Rita Von Hunty chamou a atenção para essa turma que já não olha para a Terra como um ambiente bom para investimentos daqui algumas décadas. O fetiche dos bilionários com foguetes fálicos e passeios ao redor da Terra tem nome: realismo capitalista, um termo criado por Mark Fisher (já falei sobre o Fisher aqui) para justificar a ideia de que é mais fácil o mundo acabar do que acabarmos com o capitalismo. Empresas como Tesla já estão investindo em criação de bunkers gourmet para um possível apocalipse climático. Ou ainda em colônias marcianas para que seus netos e bisnetos
Too much birthday
É claro que estou assistindo Succesion e me controlando para não sentir empatia por pessoas podres de ricas e infelizes. Apesar da qualidade do roteiro, Succesion é só um ensaio sobre como vivem os ricos. Kendall Roy, vivido com paixão pelo ator Jeremy Strong, representa bem esse deslocamento macabro com a realidade. Ele é tão rico, mas tão rico, que não sabe como o mundo funciona. Não sabe como a fama, a amizade, a criatividade ou mesmo a ganância funcionam. Não sabe ganhar nem perder nada, nada em sua órbita tem peso porque o dinheiro acumulado num único lugar faz isso, muda todas as regras do jogo. O muro de dinheiro que o separa do mundo real faz dele um Buda ao contrário, alguém que quanto mais tenta se firmar na realidade, mais se torna sem forma.
Kendall Roy é um personagem shakesperiano e isso quer dizer também que desde Shakespeare (e antes dele) estamos tentando entender como o dinheiro e o poder corrompem as pessoas. Mas o capitalismo tardio nos colocou numa enrascada muito diferente do drama clássico. É a primeira vez na história que entramos num sistema de inexorável conexão com grandes empresas, uma conexão tão mórbida que não podemos mais nos negar a fazer negócios com certos nomes.
Quando Henry Ford se tornou o símbolo do super capitalismo, podíamos escolher em não comprar um carro de sua marca. Ele era rico, mas não tão rico a ponto de estar em todos os lugares. Empresas como Amazon, Facebook e Google ignoram essa regra. Em algum momento e de algum modo pouco ético você será obrigado a usar algum serviço desses caras e eles estarão fazendo mais e mais dinheiro com a sua ajuda - quer você queira, quer não. Suas empresas não apenas crescem de modo voraz, elas engolem outras empresas, eliminando a ideia clássica do drama shakesperiano: a competitividade. É como se Macbeth conquistasse não apenas o trono do Rei Duncan, mas também o de todos os reinos possíveis ao seu redor. O capitalismo caminha para uma fase dramática de monólogo: apenas uma empresa em cena, falando suas verdades para uma plateia cada vez mais 'conectada'.
Como podemos considerar plausível que Mark Zuckerberg detenha boa parte de toda a informação do mundo? Como podemos achar exemplar que Jeff Bezos monopolize a venda do objeto mais simbólico de nossa cultura, o livro? Essa normatização da metástase é parte dessa falta de representação cultural dos ricos. Não sabemos como os ricos vivem, como são e como morrem. Não podemos lutar contra eles porque não temos uma ideia clara do que são, de quanto poder têm, onde estão e o que planejam. Ainda achamos que ser rico é uma questão de "esforço".
Outro ponto importante que nós, proletariado que passa o dia com o rosto iluminado por uma tela, temos que saber é que somos cada vez mais figurantes de um mundo comandado pelos super ricos. Quando o jornal diz que você precisa economizar água para salvar o planeta ele está dizendo que você precisa economizar água para que o agronegócio produza mais soja ou gado. Quando bancos criam campanhas fofas e roxas sobre investir com consciência estão dizendo na verdade que o endividamento geral da população é um terreno lucrativo movido a juros de 300% ao ano. Quando influenciadores surgem em todos os canais com dicas de saúde financeira para investir na Bolsa de Valores a verdade é que o mercado quer educar você e o fazer acreditar que é parte de um plano maior - que na prática só gera lucro para os grandes investidores.
Super ricos são como querubins fofos, não podemos ir contra eles.
No caso do Brasil os super ricos são ainda mais abstratos. Pergunte a qualquer um quem é a pessoa mais rica do Brasil e você irá ouvir algo como Silvio Santos, ou os donos da Rede Globo. Esses são os ricos "visíveis", o submundo bilionário brasileiro é muito mais profundo, está enraizado em bancadas políticas, empresas de agropecuárias e especulação bancária. São uma classe de seres amorfos ainda mais abstratos, que regulam a forma como comemos, vestimos e pensamos. Uma Hydra que promove o maior crescimento já visto das empresas de carne e soja enquanto 28 milhões de pessoas vivem hoje abaixo da linha da pobreza.
Não podemos jamais medir de modo objetivo quanto do fardo social que carregamos foi definido em um acordo elegante numa sala no topo de um arranha-céu.
Como os anjos do Velho Testamento, os super ricos portam parte do poder divino e são capazes de mudar o rumo do destino dos humanos.
Alguns links
Succession: as crianças quebradas de Logan Roy - Valkirias — valkirias.com.br
Falando em Succession, esse texto do site Valkírias tem um resumo do pensamento da série. Freud iria gostar.
Prato Cheio - O Joio e O Trigo — ojoioeotrigo.com.br
O podcast de O Joio e O Trigo sobre alimentação está com uma série incrível (e assustadora) sobre o agronegócio brasileiro.
Bora escrever juntos? Nova agenda de mentorias aberta. — medium.com
E minha agenda para mentorias de escrita e criação de conteúdo está aberta. Corre lá.
Livraria | Buq Livros — www.buqlivros.com.br
Depois de algum tempo longe do mercado livreiro, voltei a trabalhar com o que eu mais gosto. A Buq livros é um sebo virtual e itinerante que em breve terá sua versão física. A loja e o site já estão online.