Cansaço, moluscos roxos e Anne Carson
Um texto em tópicos para o desagrado geral dos leitores
Outro dia desses um leitor me enviou por email uma reclamação. Não gostava que eu escrevesse textos em tópicos. Parece lista de compras, disse o leitor.
É uma crítica válida. Geralmente os textos que publico nesse formato foram feitos a partir de inúmeros recortes e anotações soltas. São retalhos que tento unir dentro de uma forma imperfeita, como uma lista de compras. Sempre fica faltando alguma coisa, sempre insiro algo além da conta.
Ao dizer que o texto em tópicos é uma sobra e uma falta, me pego pensando em Anne Carson, conhecida por sua curiosidade feroz e por seus textos em formatos estranhos. Não é raro ver um ensaio de Carson virar um poema e vice e versa.
Anne Carson também tem uma visão muito peculiar sobre a criação artística, especialmente a escrita. Em seu ensaio “Candura” ela nos fala da relação da escrita como falta ou sobra. Outorgar ao papel uma “espécie de excedente”. Sendo assim, só podemos escrever e falar sobre coisas que nos faltam ou nos sobram. A escrita não seria um ponto de equilíbrio, mas um gesto de transbordamento ou de preenchimento.
Essa é uma pergunta importante não só para a escrita, mas para a criação em geral. Criamos a partir da falta ou do excesso?
Proust me parece um autor que transborda. O excesso em sua obra é uma constante. Mesmo assim, não é fácil definir que tipo de ideia o autor (Proust ou qualquer outro) teve ao criar sua obra. Talvez o excesso de memórias em Proust seja um gesto de preenchimento para uma lacuna enorme.
Graciliano Ramos me parece um autor da falta. Não de uma falta elementar, existencial (não vamos entrar nesse campo), mas uma falta premeditada, estabelecida durante a escrita. O texto de Graciliano Ramos é enxuto e bem mais do que isso. Ele é propositalmente falho.
Angústia, um de seus livros mais íntimos, é um grande exercício criativo a partir da falta. É dele o trecho:
“À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal. Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos remexem latas e embrulhos no guarda-comidas, automóveis roncam na rua. Em duas horas escrevo uma palavra: Marina...”
Angústia se organiza ao redor da falta de inspiração para escrever. O autor se apresenta como alguém vazio mas ainda assim presente. É essa presença que enche o livro e não uma ideia inspiradora. Estar sozinho diante do papel já é estar diante de alguma. É a falta que revela o excedente.
Uma diferença curiosa entre Proust e Graciliano Ramos é a ideia de cansaço. Proust parece incapaz de se cansar. Tudo nele é estímulo, chamado, caminho. Pelo menos em sua escrita. Bem sabemos que Proust viveu trancado num quarto forrado com cortiça. Escreveu quase tudo deitado.
Graciliano Ramos foi um homem magro e veloz. Foi prefeito, viveu metido entre os afazeres públicos. Seus personagens, por outro lado, estão sempre amarrados a um tipo peculiar de fadiga. Estão cansados de pensar, de viver, de agir e mesmo assim vivem, pensam e agem.
Também ando cansado. Cansado da internet, dessa mania de produtividade, dos cursos online e da Taylor Swift, que parece que não se cansa jamais e lança um disco novo a cada 90 dias. Estou cansado dos textos longos, dos curtos, das listas e dos poemas. Cansado de escrever, de não escrever, de ler , de não ler, de ser lido e de não ser lido.
Seria um cansaço por falta ou excesso? Impossível dizer. Temos tanta coisa sobre nós e ao mesmo tempo… nada. A gestão da insatisfação vem se tornando cada vez mais difícil. Você fica tão cansado que… nem descansando parece descansar.
O texto aqui também já está ficando cansado. Vasculho minhas notas em busca de alguma coisa interessante para dizer pra vocês… vejamos…
Só encontro mais anotações sobre a Anne Carson. Lá vai uma das boas:
Anne cita a tradução caótica de Hölderlin para a peça Antígona. Nessa versão surge uma palavra estranha com uma história fascinante.
A palavra “púrpura” vem do latim purpureus, que por sua vez vem do grego porfura, um substantivo que define uma espécie de molusco da qual se extraía toda a tinta dessa cor na antiguidade.
Isso quer dizer que se você precisasse do pigmento púrpuro teria que procurar pela costa esse molusco chato e espreme-lo. O tal molusco também era conhecido como kalxh, o que originou o verbo grego kalxainein, que significava, segundo Carson, “procurar o molusco púrpura”. Com o tempo o verbo passou a representar um sentimento, o “estado emocional de perturbação profunda”, ou “tornar-se sombrio de tão aflito, [...] apegar-se a pensamentos obscuros, remoer nas profundezas da própria mente.”
Procurar o molusco roxo causava uma ansiedade daquelas.
É uma imagem muito poética. O melancólico, assim como o catador de moluscos roxos, é alguém que está sempre revirando o mar atrás de alguma coisa difícil de achar.
Pois bem, então um dia o poeta alemão Hölderlin se deparou com esse verbo estranho nas primeiras estrofes de uma peça escrita há séculos. Antígona estava kalchainous das ideias, angustiada, mas Hölderlin traduziu o verso como:
“Você parece pintar uma palavra de roxo-avermelhado.”
Hölderlin passou quase quarenta anos preso numa torre diagnosticado como louco. Dizem que sua loucura era ensaiada, um recurso muito eficaz para se manter longe dos outros e poder ler e escrever em paz.
Hölderlin talvez só estivesse, assim como todos nós, cansado de procurar pelo maldito molusco roxo.