Colagem do autor.
O romance O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, começa com a apresentação da voz. Essa não é apenas uma forma de introduzir a voz narrativa, mas de inserir “a voz” que conta como algo diferente dos personagens. A voz é alguém que passeia entre os fatos, unindo-os como numa tapeçaria.
A voz é uma solução inteligente, apara certos problemas do texto, dá ao narrador uma justificativa para o entra e sai de fluxos, mas ela também é uma dificuldade. Se torna por vezes uma presença sem corpo, uma ausência difícil de apreender.
Embora Flaubert tenha se tornado célebre justamente por sua voz narrativa ser tão incrivelmente costurada sob as estruturas do texto que o leitor se sente diante de uma coisa espontânea, um livro nascido de si mesmo, de algum modo sua ausência é um tipo de presença. Talvez seja essa a “presença do ausente” da qual falava Sartre. Estar num bar aguardando a chegada de um amigo muito esperado dá a quem espera um sentimento de presença tão intenso quanto a presença real do aguardado.
Desaparecer é um jeito muito incômodo de se fazer presente.
O vão entre as vigas é bem mais importante que e a viga (Niemeyer, Lina Bo Bardi). O espaço em branco ao redor da página é tão fundamental quanto a mancha do texto. Quem some deixa uma lacuna que após algum tempo será preenchida (seja pela memória ou pela invenção da memória), mas até que isso aconteça, o espaço deixado representa ele mesmo o ausente.
Itamar Vieira Jr. também tem um conto no qual o personagem principal é a voz. Creio que se eu lesse mais os novos autores brasileiros encontraria o mesmo tipo de recurso.
O mesmo recurso surge em Companhia, de Beckett, no qual “Uma voz chega a alguém no escuro”. O texto usa, aqui e ali, a segunda pessoa como âncora: “Se ele pudesse falar para e de quem a voz fala haveria uma primeira [pessoa]. Mas ele não pode. Ele não vai. Você não pode. Você não vai.” No caso de Beckett, o narrador sem forma muda o foco do texto para o próprio leitor, que se sente obrigado, quase coagido, a se colocar dentro da lacuna proposital da narrativa. A ausência do autor aqui é preenchida pela voz do leitor (se é que isso é totalmente possível).
Beckett gostava de criar caminhos sem saída, becos narrativos que não davam em nenhuma rua (o contrário de Walter Benjamin, que escrevia “passagens” que só faziam sentido se percorridos de modo desvairado). Beckett gostava de chamar esses tropeços de “têtes mortes” ou “faux départs” (cabeças mortas ou falsos começos). Eram começos sem desfecho ou finais sem introdução. Faz sentido se pensarmos que tudo já foi dito e de tantas maneiras que o leitor com alguma bagagem consegue fazer o trabalho do autor, pontuando os abismos com pontes de seu próprio conhecimento ficcional.
Eis uma coisa que me irrita: a tendência, muito em voga na literatura nacional de agora, de narrativas milimetricamente explicadas. Não é um erro de autor iniciante mas uma vontade autoral de se fazer entender e de se mostrar autor, uma vontade de presença. Não é tampouco um excesso de descrições (rostos, paisagens, salas), mas um cadenciamento no qual a escrita evita os vazios. Isso vem muito da tradição do romance e da ideia de que a folha em branco é um problema (não é).
A fragmentação não é um problema. O curta La jetée, de Chris Marker, é a melhor representação de que o leitor/espectador sabe lidar bem elementos faltantes. La jetée é todo feito com fotografias narradas. Não há imagens em movimento. A retirada desse elemento fundamental ao cinema causa estranhamento, nunca repulsa.
A narrativa curta sempre lida bem com o vazio. Lembro agora de Lydia Davis, que segue pulando de um conto curto sobre banalidades para outro, ainda menor, no qual um casamento se destrói sob os olhos do leitor. Ou ainda Anne Carson e seu Autobiografia do Vermelho, que espreme a métrica poética dentro de um romance sobre um ser mitológico. Ou ainda Matilde Campilho e seu livro Flecha, com frames de momentos congelados no agora.
Meu primeiro livro de contos, O coração de um animal assustado, sairá em breve e você pode garantir seu exemplar autografado me mandando um oi no valternascimento@me.com. Até.
Falando em teatro (Beckett) e voz, recomendo muito assistir a peça "Vaga Carne" de Grace Passô, dramaturga mineira contemporânea, absolutamente incrível. Na verdade, a leitura também é uma experiência maravilhosa, pra quem lê peças teatrais como literatura ou não. É um monólogo da voz que vai se desenrolando de forma muito inesperada. Bom demais.