Quase todos os escritores que conheço estão dando cursos de escrita.
Os que não estão dando curso estão fazendo cursos de escrita.
Não há nada de errado em um escritor ensinar outros escritores a escrever, desde que haja nessa equação um distanciamento necessário entre a teoria e o produto final.
O que se pode aprender num curso de escrita?
Compartilhar rotas, traçar algumas estratégias, evitar certos clichês. Mesmo assim, essa é uma tarefa inglória já que muitas vezes o estilo de um autor está justamente em não escrever bem demais. A originalidade quase sempre reside na falha.
Um curso de escrita pode ser uma boa oportunidade para falhar em conjunto, desde que você entenda que falhar é uma boa coisa. Mas a ideia de que se pode aprender a escreve é perigosa. Gosto mais da ideia de aprender a ler como um escritor.
O boom de escritores dando cursos de escrita também revela uma peculiaridade: ninguém ganha dinheiro escrevendo livros no Brasil. Exceções são possíveis, mas o mercado de livro como um todo é um grande redemoinho de boletos vencidos.
Vendi livros durante 13 anos e garanto: nenhuma livraria ganha dinheiro de verdade com isso. Nem mesmo a Amazon, que na prática usa o livro como isca para vender outras coisas.
Depois que passei do balcão para a parte interna dos livros, aprendi que também as editoras não ganham dinheiro. Publicar livros é um processo incrivelmente cansativo, complicado, no qual muitos egos são inflados e outros tantos são feridos.
Um amigo editor que trabalhou por décadas para uma grande editora me disse que dos 40 livros que ele lançava por ano, uns 8 ou 10 rendiam alguma grana. O restante das publicações girava de livraria em livraria, de evento em evento, pegando poeira, encardindo as lombadas, até pararem nas bancas promocionais e sebos.
Livrarias são de fato um grande cemitério de sonhos e de alguma forma é na morte de tantos livros que outros livros nascem.
A falha, como bem vemos, é uma boa coisa.
E no centro desse espiral de expectativas está o autor. Perplexo diante da página em branco ele escreve para um leitor invisível e para um mercado que repele tanto a inovação quanto a tradição. É natural que se tente compensar essa solidão trocando ideias, formando grupos, mas no final do dia escrever é meio como morrer, só se faz sozinho.
O que se escreve nasce na dúvida, vive na distância e morre no esquecimento.
Não me refiro ao esquecimento do autor sem aplauso, mas no apagamento da memória. O que sobra de um livro lido não passa de algumas imagens vagas. Alguns livros que li mais de uma vez hoje soam um pouco mais vívidos, mas de modo geral ler é gerenciar o esquecimento.
Alguém disse esses dias que não se lembrava de nada que havia acontecido depois de um show de uma cantora famosa. A teoria, não totalmente errada, é que a adrenalina de ver ao vivo alguém que só existia na imaginação apaga a memória como num acidente.
Proust, Guimarães Rosa, Saramago, Caio Fernando Abreu, Borges, Sylvia Plath e tudo o que li de bom ao longo da vida são para mim como um grande show de rock, uma batida de carro, um incêndio. Um acontecimento tão intenso e íntimo que deixa na memória apenas um conjunto de sensações desconexas. A única forma possível de apreender essa névoa flutuante é escrevendo, é alimentando o ciclo de lembrar e esquecer, lembrar e esquecer.
Em “A History of Books”, o autor australiano Gerald Murnane traça uma estratégia de escrita muito original.
“A History of Books” não é um livro sobre a história do livro de um modo tradicional. A genealogia que Murnane nos apresenta é feita a partir da sensação que um livro nos causa. Murnane não tenta impor sobre a memória as regras da literatura (como geralmente fazem os escritores), mas o contrário. Sua escrita estabelece as regras da memória sobre o terreno da composição literária.
Invés de “solidificar” a memória num texto, Murnane tenta manter a nebulosidade da memória dentro da literatura. Se tudo o que se lê será esquecido, o melhor é abraçar esse esquecimento desde a primeira linha do texto.
“A History of Books” trata do que sobra de uma leitura. E aqui é importante dizer que para Murnane, escrever é ler. O escritor nada mais é do que alguém que leu e se achou no direito de completar sua memória escrevendo.
Os personagens de “A History of Books” são apresentados dentro de um ciclo de lembranças reais e ficcionais. Personagens de um livro (o de Murnane) lendo outros livros (que Murnane leu) e repetindo as sensações da leitura (de Murnane e deles mesmos).
Para Murnane, a leitura só pode ter algum sentido quando tornada escrita. Escreve é lembrar o que se leu e transformar isso numa nova oportunidade de leitura. Escrever é comentar a leitura, é solidificar imperfeitamente a memória do que foi lido para ver tudo isso se apagar dentro da mente do leitor.
Não achei em “A History of Books” nenhuma frase poderosa, nenhuma passagem memorável. É como se todo o livro fosse escrito em areia (lembrei-me de Borges), como se o processo de esquecimento fosse parte da história. Não é um livro que some, mas tampouco é um livro que fica. É o meio entre a solidez e o vácuo. Suspensão presente ou presença-ausente.
As conexões criadas por Murnane não são definitivas. O livro que um personagem leu não é apresentado de modo claro. Pode ser O Senhor das Moscas, de Golding, como bem pode ser alguma coisa que eu mesmo li semana passada. Todos os livros caem no mesmo distanciamento, no mesmo tipo de dispersão sublime e opaca.
Li “A History of Books” enquanto lia “Putas Assassinas”, de Roberto Bolaño, por isso em minha memória Murnane e Bolaño ocupam o mesmo espaço imaginativo.
Murnane é um vitral opaco, Bolaño é um mural rabiscado com cores fortes.
Em “Putas Assassinas” há um conto sobre um autor que vai dar aula de literatura num vilarejo perdido no meio do deserto no México. O conto narra a chegada do autor, o contato com os alunos (ansiosos em aprender a escrever poesia, como se isso fosse possível) e os longos passeios de carro do autor com a diretora da escola de literatura. Nada de importante acontece, o conto de Bolaño é uma sucessão de frustrações.
Durante um passeio noturno, a diretora pede que ele pare o carro na beira da estrada. A mulher, que não é bonita, mas nem tampouco desprezível, o leva até um descampado onde ocorre um fenômeno curioso. Num terreno repleto de lixo e placas de plástico, uma luz verde surge na noite morna do deserto. Essa luz quase sobrenatural é formada a partir do reflexo dos carros que passam pela rodovia noturna. É um arranjo curioso, a luz só aparece em determinada hora, quando a noite ainda não é total.
É um momento poético, bonito, o único momento memorável da estadia do autor naquela cidade tristonha. Pode ser uma memória do próprio Bolaño, que viveu no México por muitos anos e se interessava por situações tediosas, mas pode ser também parte de uma invenção para compensar a frustração de um passeio desconfortável com uma pessoa estranha.
A minha memória dos livros de Murnane e de Bolaño neste momento é vívida, mas quando tento reatar as pontas que começam a dissolver, encontro um vazio, que não é noite completa, mas também não é luz.
E você que agora me lê, lê também, através de mim, Murnane, Bolaño e um monte de resíduos literários, que são meus e seus. Pedacinhos de livros que passaram por mim e você e que formam um reflexo luminoso que só acontece sob uma circunstância específica. Uma luz verde que vai se apagar, mas enquanto ela durar, estaremos juntos numa memória falsa de um passeio de carro por uma rodovia que corta um deserto mexicano.
Meu primeiro livro de contos, O coração de um animal assustado, já está no prelo. Você pode garantir seu exemplar autografado me mandando um oi no email: valternascimento@me.com.
Até breve.
Eu já cai no conto de cursos para escritores, tenho trauma. De uns 10 que fiz, 2 valeram a pena, no máximo. Dá um aperto no coração da gente, porque eu jurava que se tivesse alguém nesse mundo que entendesse a minha dor na página em branco seria outro escritor, mas não. É boleto na mão e salve-se quem puder.
Obrigado pela sinceridade e contar um pouco a real por trás desse mercado. Mas ainda assim, entendo que no meio desse lastro de gente que fica no caminho, surgem alguns expoentes raros. Tomara que sim.